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  • Ricardo de Jesus Machado

Argentina, 1985. Brasil, 2023


Os atores Peter Lanzani e Ricardo Darín interpretram, respectivamente, o copromotor Luis Moreno Ocampo e o promotor Julio Strassera no filme "Argentina, 1985". Foto: Divulgação/Amazon Prime Vídeo


Te vas a meter preso a Videla?

A todos los responsables.

(diálogo do filme, Argentina, 1985.)


 

Esse ensaio começa há pouco mais de 12 anos. Era uma manhã gelada de outono em Buenos Aires. Havia chegado naquela madrugada e caminhávamos rápido pelas ruas de um bairro cujo nome me escapa, mas que era mais ou menos próximo ao Teatro Colón. Andávamos[1] com pressa e atentos. Era preciso chegar à sede onde se reuniam as Mães da Praça de Maio quando não estavam em frente à Casa Rosada. Tratava-se de um local discreto. Descobri por meio de algumas ligações a um produtor de uma rádio portenha um contato da associação e consegui agendar a entrevista. Éramos jovens, ansiosos e estaríamos diante de uma de las madres. Na hora do encontro, seguramos nossa onda, mantivemos o decoro e nos comportamos como os jornalistas experientes que não éramos.

Batemos à porta, uma mulher nos recebeu e logo fomos encaminhados à sala onde seria realizada a entrevista. Célia Prosperi nos recebeu em um espaço pequeno, repleto de quadros, fotografias e uma enorme mesa com um tampo de vidro, sobre a qual gesticulava e onde refletia suas velhas mãos nenhum pouco débeis. À época, fazia 33 anos, que Célia, juntamente com suas companheiras, ia todas as quintas-feiras à Plaza de Mayo reclamar às autoridades o desaparecimento de dezenas de milhares de pessoas durante o regime militar argentino, que eram para elas 30 mil filhos. O ritual se repetiu por décadas e mais décadas numa incansável luta dessas mulheres que tinham como arma o próprio corpo e um pañuelo branco sobre a cabeça.

Em setembro de 2018, com 93 anos, Célia morreu e encerrou sua jornada de luta, dor e esperança de jamais ver instaurada outra ditadura em seu país. O que de fato, até hoje, nunca voltou a ocorrer. Aliás, a Argentina foi a primeira nação do mundo a condenar penalmente seus ditadores, naquele que foi o mais importante julgamento desde o Tribunal de Nuremberg. Esse é o pano de tempo em que se descortina o filme do jovem diretor Santiago Mitre, Argentina, 1985.


Argentina, 1985

Em suma, a película é baseada no processo que culminou no “Julgamento das Juntas”. Tratou-se de um tribunal civil a que os militares argentinos das três armas – exército, marinha e aeronáutica –, incluindo o presidente-ditador Jorge Rafael Videla[2], foram julgados pelos crimes cometidos entre 1976 e 1982 (até a Guerra das Malvinas), período que vigeu o regime de exceção. A acusação ficou a cargo do promotor Julio Cesar Strassera e do procurador-adjunto Luis Moreno Ocampo Gabriel, interpretados, respectivamente, por Ricardo Darín e Juan Pedro Lanzani.

Na estória (e na história) o processo foi bastante tenso. A trama compreende os poucos meses em que a peça de acusação foi montada até as sessões em que os terroristas de Estado foram julgados. A questão central a ser respondida pela promotoria contra os réus foi ordenada pelo presidente Raul Alfonsín, por meio do Decreto nº 158/83. Contudo, a investigação só começaria cerca de um ano e meio depois, em função da promulgação da Lei 23.049/1984, que restringia a ação da Justiça Militar a crimes essencialmente militares. Com isso, os comandantes das forças armadas passaram a ser julgados no âmbito da Justiça Civil pelos crimes cometidos durante a ditadura.


Strassera, um discreto, experiente e tenaz procurador, tinha dois desafios difíceis e convergentes: 1) encontrar colegas dispostos a trabalhar nesse processo; 2) pouquíssimo tempo para apresentar as provas de que o morticínio de 30 mil pessoas foi sistemático e de conhecimento das altas patentes militares. Seu auxiliar, Moreno Ocampo, era, ao contrário, um jovem procurador oriundo de uma aristocrata família portenha, cujo tio era, também, um militar de alta patente. É justamente o jovem e inexperiente quem oferece uma alternativa ao dilema da equipe que seria montada para investigar o caso, sugerindo incluir outros jovens servidores do judiciário e estudantes no lugar dos velhos e covardes carreiristas, que não desejavam nem se esforçariam em julgar os militares.

O trabalho, tal como retratado no filme, foi impressionante. Entre os dias 22 de abril e 14 de agosto de 1985 foram tomados depoimentos de nada menos que 833 pessoas. Todos eles gravados perante os juízes. O processo havia chegado às mãos do Ministério Público Fiscal, órgão responsável por recolher as provas, no dia 20 de setembro de 1984, aproximadamente seis meses antes das oitivas. A dois dias de completar um ano do início da investigação, em 18 de setembro de 1985, Strassera começara a sustentação oral diante do colegiado de juízes, dos acusados e das centenas de pessoas que ocupavam os salões da Câmara Nacional de Apelações em Matéria Penal e Correcional Federal, em Buenos Aires.

O resultado do julgamento, ampla e historicamente conhecido, condenou Jorge Rafael Videla e Emilio Eduardo Massera à prisão perpétua. Roberto Eduardo Viola foi condenado a 17 anos de prisão, Armando Lambruschini a 8 anos de prisão e Orlando Ramón Agosti a 4 anos e 6 meses de prisão, todos destituídos dos cargos que ocupavam.

Omar Graffigna, Leopoldo Galtieri, Lami Dozo e Jorge Basilio Anaya foram absolvidos. A decisão e a aplicação das penas teriam idas e vindas, inclusive com o indulto do ex-presidente Carlos Menem a Videla, em 1991. Em 2010, por fim, a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina, apoiada em Convenções Internacionais e jurisprudência do próprio país, considerou inconstitucional o decreto de indulto expedido por Menem.


Brasil, 2023

É possível, mais do que isso, desejável que a cinematografia brasileira conte a história que o Brasil testemunhou durante a pandemia global da covid-19, cujo pico de mortes registrou milhares de mortes por dezenas de semanas a fio. E qual a relação disso com o contexto da ditadura argentina? Em que pese o Brasil não ter sofrido (por um fio) uma ruptura constitucional – ou seja, um golpe –, os últimos anos foram marcados por profundos retrocessos em políticas públicas, sobretudo às populações marginalizadas e minorias políticas. Em 2020, ano em que a pandemia da covid-19 atingiu, por semanas a fio, picos diários de milhares de mortes, inclusive com uma crise sem precedentes de falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, o governo brasileiro tinha nada menos que 6.157 militares ocupando cargos civis no Estado.

Parte importante desse universo de fardados estava no Ministério da Saúde, sob a batuta de Eduardo Pazuello. Os dados são de um Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU). Portanto, não tivemos um regime militar instituído, mas um regime civil repleto de militares em pastas estratégicas e, por coincidência ou responsabilidade, culminou com o maior morticínio de brasileiros em toda sua história. Do começo da crise sanitária mundial até agora, foram 689.665 vítimas da covid-19 oficialmente reconhecidas pelo Estado, segundo dados do Ministério da Saúde.

A população brasileira soma algo da ordem de 2,7% da população mundial, mas a certa altura da pandemia o Brasil registrou 13% dos mortos globais. As vítimas do coronavírus são encontradas em todos os quadrantes do globo, mas a questão sensível, ainda pendente de explicação, são as proporções. Aqui, os números foram quatro vezes maiores que a média populacional. Isso ponderando apenas dados oficiais, sem considerar a subnotificação ainda em investigação por parte de pesquisadores da área.

Até início de dezembro, quase 700 pessoas perderam a vida vítimas da covid-19. O Brasil registrou 13% das mortes com a pandemia no mundo. Os povos indígenas foram um dos grupos mais afetados. Na imagem, enterro coletivo no cemitério N.S. Aparecina, em Manaus. Foto: Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real.

Tal como no caso argentino de 37 anos atrás, a transição de governo e quebra dos sigilos centenários abrirão a oportunidade para discutirmos os erros e acertos da gestão na cruzada necropolítica brasileira. A abertura desse flanco de possibilidades de passarmos a limpo nosso passado recente tem como marco as eleições presidenciais e como protagonista o nordeste do Brasil. Pelo menos dois terços dos moradores da região votaram a favor de uma mudança no Executivo federal, puxado, sobretudo, pelo voto de mulheres e pessoas empobrecidas. A Bahia, quarto maior colégio eleitoral do país, teve papel decisivo neste contexto.

Calhou, por circunstâncias conjunturais e pessoais, de eu passar a viver numa pequena cidade do oeste baiano desde setembro de 2022. Nascido no extremo sul do país, acostumado mais ao pampa que ao cerrado e o semiárido, minhas memórias e afetos foram, até então, construídos predominantemente no espaço subtropical, que se estende do Rio Grande do Sul, atravessa o Uruguai e ultrapassa Buenos Aires em direção ao interior da Argentina. Daí meu interesse pelo cinema argentino.

Ocorre, no entanto, que sempre tive um interesse muito genuíno e profundo pelo nordeste e conhecer o São Francisco, o Rio, foi como encontrar pela primeira vez um velho amigo que a literatura me apresentou. Viver aqui, no nordeste, é um certo privilégio, principalmente nesta esquina do tempo, cuja possibilidade de futuro para o planeta, em virtude do colapso climático, passa pela periferia do mundo.

Nesse ínterim, bastante pessoal e complexo, cruzam-se Argentina e Brasil, ainda que separados por décadas. O que está em jogo, afinal de contas, é a memória de nossos mortos. Um país, há mais de três décadas decidiu fazer memória e com isso justiça aos assassinados pelo regime ditatorial. O outro, há 43 anos, decidiu a anistiar os terroristas de Estado e jogar para debaixo do tapete o sangue de nossas vítimas.

O número de perseguidos e assassinados é dezenas de vezes maior que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade. No documento constam apenas 434 pessoas mortas ou desaparecidas. Isso, contudo, não se sustenta nem à investigação de um estagiário de jornalismo. Somente no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo, em uma vala clandestina havia 1.049 ossadas sem identificação, notícia amplamente divulgada pela imprensa. O livro de Rubens Valente, Os fuzis e as flechas (2017), apresenta documentos oficiais resultantes de sua pesquisa para a redação da obra e de uma investigação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cuja estimativa contabiliza nada menos que 8.350 índios mortos por negligência ou ação direta do Estado entre 1946 e 1988.

O destino nos deu uma segunda chance para fazermos, de fato e de direito, uma Justiça de Transição, ainda que com décadas de atraso. É preciso, para tanto, ocupar ruas e espaços digitais – redes sociais, sobretudo – na defesa intransigente de uma justiça que seja capaz de honrar a memória de nossos mortos.

Os quais, dois terços poderiam ser evitados não fosse o atraso de meses na compra das vacinas e cujas políticas de proteção à população, tais como contact tracing e isolamento social, não foram tomadas por parte do governo federal, mesmo com os alertas dos especialistas.

O desafio é devolver o Brazil ao Brasil com sua pluralidade e diversidade que sempre lhe foi característica e que sempre se tentou apagar. O delírio de uma identidade brasileira narcísica, elitista e de viés cristofascista[3] – expressa na versão brasileira do aforismo do Terceiro Reich “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” –, fundamenta-se sobre o paradoxo de negar as lutas identitárias para afirmar a própria como a única possível.

Basta caminhar pelas ruas das periferias das grandes cidades ou pelo interior do país, para que se perceba esboroar o castelo de areia de uma identidade singular que nunca existiu. O preconceito e o discurso xenófobo a que parte das populações nordestinas foram (e são) submetidas após o resultado das eleições demonstram a incontornável fratura de pensar a identidade brasileira como uma unidade. Nisso o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro foi muito feliz ao afirmar que o Brasil não existe.

O Brasil não existe: o que existe é uma multiplicidade de povos, indígenas e não-indígenas, baixo o tacão de uma elite corrupta, brutal e gananciosa, povos unificados à força por um sistema mediático e policial que finge constituir-se em um Estado-Nação territorial. Um lugar que é o paraíso dos ricos e o inferno dos pobres. Mas entre o paraíso e o inferno, existe a terra. E a terra é dos índios. Isto posto, no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. (VIVEIROS DE CATRO, 2020, s/p)

A grande tarefa que temos pela frente, para o Brasil de 2023, é brigar para que possamos, finalmente e com enorme atraso, construir uma justiça de transição que leve em conta a memória dos quase 700 mil mortos pela covid-19. É preciso que os responsáveis pelas mortes sejam julgados, tenham direito à defesa e sejam punidos pelos crimes que cometeram.

Mais de 60 milhões de brasileiros escolheram a civilização ao invés da barbárie. Agora é hora do Estado honrar a escolha democrática e cumprir seu papel em favor da democracia e do estado de Direito. Isso passa por fazer justiça às vítimas do próprio Estado. Que façamos a nossa parte e honremos o mais fundamental de todos os direitos, o direito à vida. É a nossa chance. Na encruzilhada da história, chegamos ao “Brasil, 2023”.


 

Ricardo de Jesus Machado, professor de Publicidade e Propaganda da UFOB/Samavi. Realizou doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de pesquisa Cultura e Significação. Jornalista de formação, é mestre em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), onde também realizou especialização em Filosofia.



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NOTAS

[1] Dedico este texto aos amigos que há muitos anos não vejo, Ana, Tárlis e Bruna, companheiros desta viagem à memória.

[2] Os militares julgados, além de Videla, foram: Orlando Ramón Agosti, Emilio Eduardo Massera, Roberto Eduardo Viola, Omar Graffigna, Armando Lambruschini, Leopoldo Galtieri, Lami Dozo e Jorge Basilio Anaya. O processo ficou conhecido com “Causa 13/84”.

[3] A expressão tem origem nos trabalhos da teóloga alemã Dorothee Sölle, que descrevia o fenômeno da relações entre o partido nazista e as igrejas cristãs germânicas, foi retomada pelo teólogo brasileiro Fabio Py em perspectiva com a conjuntura nacional. Os desdobramentos dessa ideia pode ser lidos na entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU.


REFERÊNCIAS

ARGENTINA, 1985 (Original). Direção de Santiago Mitre. Roteiro: Santiago Mitre, Mariano Llinás, Martín Mauregui. Buenos Aires: Infinity Hill, Amazon Studios, Kanya Films, La Unión de Los Rios, 2022. (140 min.), son., color. Legendado.

ARGENTINA. COMISSIÓN PELA MEMÓRIA. Texto del Decreto 158/83.

BARBON, Júlia. Datafolha: Lula mantém liderança entre mais pobres, e Bolsonaro, nas faixas de renda acima. Folha de São Paulo. Rio de Janeiro. 30 set. 2022.

BARBON, Júlia. Lula mantém vantagem sobre Bolsonaro entre mulheres e homens. Folha de São Paulo. Rio de Janeiro. 30 set. 2022.

LIS, Laís. Governo Bolsonaro mais que dobra número de militares em cargos civis, aponta TCU: levantamento identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo. Ministério da Defesa considera somente os da ativa e diz que são 3.029. G1. Brasília. 17 jul. 2020.

MACHADO, Rico. Pequena biblioteca do fim do mundo. Antropofagias. Porto Alegre. 4 set. 2021.

SAÚDE, Ministério da. Covid.

SENADO, Agência. Pesquisas apontam que milhares de mortes por covid poderiam ter sido evitadas no Brasil. Portal - Senado Notícias. Brasília, p. 0-0. 24 jun. 2021.

UENF, Assessoria de Comunicação (Ascom) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Bolsonaro e o cristofascismo brasileiro: relação cristianismo e política. Entrevista com Fábio Py. Ihu. São Leopoldo. 16 jul. 2021.

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: a história de sangue e resistência indígena na diratura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Identidade brasileira. Academia.Edu. Rio de Janeiro. 1 jan. 2022.

WANDELLI, Raquel. Nazismo escancara sua ameaça: Slogan de Bolsonaro é tradução literal do lema de Hitler. Jornalistas Livres. Brasil, p. 0-0. 15 out. 2018.

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