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À MEMÓRIA

DO MESTRE

LIMIRO

Abertura

por Redação

Mestre das caretas de Santo Antônio, comunidade rural de Canápolis (BA), faz passagem aos 84 anos e comunidade realiza a caretagem dez dias depois, anunciando que Seu Limiro está vivo.

Seu Limiro devia ter uns 15 anos quando começou a fazer caretas (máscaras) e bonecos para a caretagem (malhação de Judas) no Sábado de Aleluia, cujo cortejo transitava entre as comunidades de Santo Antônio, município de Canápolis, e São Pedro, de Santa Maria da Vitória. Os dois municípios estão no Território de Identidade Bacia do Rio Corrente, no Oeste da Bahia.

Registrado como Almir Vieira de Farias, Seu Limiro garante que nasceu em 1939, contrariando o 1940 do registro de nascimento, filho de Albana Alves de Souza (1917-1984) e Miguel, que “esfumaçô no mundo” quando ele tinha oito meses de nascido.

 

Em 1963, um ano depois de Canápolis ser emancipada, ele foi morar em Goiânia. Trabalhou de chapeado e na construção civil, socando pedras em valas para alicerces de prédios. Fez economia e, tempo depois, voltou para Santo Antônio, viver da agricultura, de pequenos negócios, dos saberes da terra e das plantas; viver a alegria da caretagem, a experiência de sorrir coletivamente e, simplesmente, viver.

 

Em 20 de março de 2023, aos 84 anos, Seu Limiro fez a passagem e foi plantado no pequeno cemitério da comunidade. Foram cerca de sete décadas dedicados à arte da caretagem, dedicados a transformar o cotidiano daquela gente em momentos extraordinários, espetaculares do viver.

 

Passados dez dias, no dia 30 de março, exatamente no Sábado de Aleluia, os foliões puseram suas caretas, muitas produzidas por eles, encheram a paisagem sonora de alegria e saíram pelas ruas de Santo Antônio e São Pedro, anunciando que a caretagem não havia morrido, pois estava bem plantada na cultura daquele lugar.

 

Para homenagear o mestre, nesta edição Francisco apresenta abaixo depoimentos, produções realizadas sobre, com e por Seu Limiro, que nos últimos anos vinha gozando de um reconhecimento mais amplo sobre sua arte e seus saberes sobre as plantas e a vida.

"Faço apenas uma aparência aí"

por Cícero Félix

Sábado de Aleluia. Dia de festa na pequena comunidade rural de Santo Antônio, em Canápolis. Há um mês, aproximadamente, seu Limiro começou os preparativos. De batismo é Almir Vieira Farias, mas este quase ninguém conhece. O homem alto e de cor acentuada pelo sol, com barba e cabelos ralos é só Seu Limiro. Este, todos conhecem. Tem 75 anos e há mais de 60 faz máscaras e organiza a festa para a Care­tagem de Santo Antônio.

 

Como dar nome ao ofício de Seu Limiro? Bonequeiro? Caretei­ro? Quem faz caretas, bonecos é o quê? Seu Limiro, ora! O único da comunidade a produzir as caretas.

 

- O senhor é o artista de Santo Antônio!

 

- Faço apenas uma aparência aí... – diz, meio encabulado.

 

- O senhor é um grande artista! – reforço.

 

- Muito obrigado pela atenção e a consideração, a força que tá dando.

 

Sua fala coloca o visitante na condição de partícipe da brinca­deira, integrado ao universo subjetivo do imaginário das máscaras e seus desenhos. Sob formas de face em barro vão surgindo as caretas com bocas abertas e olhos arredondados, animais antropomórficos, bonecas com sombrinha, vestido e adereços industriais, ave com co­roa modelo arlequim... São cerca de 20 peças ao todo, entre másca­ras simples feitas com papelão e estruturas com bonecos que podem ser articulados através de engrenagens.

 

- De onde o senhor tira ideia para fazer esses bonecos?

 

O dedo indicador da mão direita aponta e empurra a cabeça umas três vezes.

 

- Foi só eu sozinho. Aí num tem nenhum digitório de uma pessoa a não ser eu... – diz com certo orgulho.

 

Suas criações são fabricadas em um salão contíguo à sua casa. Ele não conta quantas noites vara quando chega próximo a festa.

 

- Até o galo cantá tem vez que eu tô trabalhando.

 

- De onde vem o prazer por essa arte?

 

- Menino, deixa eu contá a história. Eu, pra mim, quem faz essa brincadeira não é eu não. É todo mundo. Pra mim é todos vocês que chega e vão fazê isso por que é muito interessante, né?

 

- Qual o significado da caretagem?

 

- Bom, o sentido era assim. Fazia de conta assim... fazia na Sex­ta-feira da Paixão, como se fosse uma pessoa. Fazia tipo uma vin­gança... lá pras oito horas, nove, dez hora, nóis acaba com todo o movimento.

 

- Tem algum momento religioso no movimento?

 

- Nesse trabalho meu, para acreditar tem gente de todo o tipo. Na Barriguda tem muito crente... mas na hora do meu trabalho... vem esse pessoal todo. Vem crente, vem católico. Crente me ajuda, católico me ajuda. Aí a gente faz uma farofazinha, só pra brincadeira mesmo. A gente faz isso porque a gente acha bonito, pra num ficar parado o tempo todo.

 

A caretagem de Santo Antônio começa na madrugada da Sexta­-feira da Paixão, depois que o galo canta, segundo Seu Limiro.

 

- À meia-noite nóis junta uma tráia de roupa e sai avisando pra turma que vai havê aquele movimento. Nós dá uma volta na rua, chega... Uma base de seis horas, uma base de sete horas pra frente vai pra São Pedro [Açudina, em Santa Maria da Vitória]. Depois que chega de lá... aí agora vai matar o Judas.

 

Durante toda a brincadeira, os caretas desfilam sob o ritmo de um grupo de Reis da própria comunidade. Quando retornam de São Pedro, o Judas é posto em uma escada na entrada de um sítio ceno­gráfico com pés de bananeiras e cana-de-açúcar. Tudo acontece na frente da casa de Seu Limiro, que a essa altura está envolvido com a comida. Zabumba, tambor, triângulo, flautas e reco-reco, pandeiro e triângulo não param. A brincadeira na rua se encerra quando os meninos avançam sobre o Judas lançado no ar. Cada um quer ras­gar, açoitar uma parte, arrancar um membro. Minutos depois, um rastro de pedaços de Judas se espalha pela comunidade.

 

- Quando termina, qual a sensação?

 

- Nóis come farofa, nóis toma um cafezin, nóis toma um refrige­rante. Então, aquilo pra mim é a maior alegria do mundo. Se eu por acaso morrer e achar pelo menos uma pessoa que interesse por esse lugarzin nosso aqui, pra mim é o maior prazer da vida. Eu morro satisfeito. Por que eu nasci aqui e tô esse tanto de ano. Pra mim, meu prazer é vivê aqui...

 

As caretas, algumas quebradas, outras ausentes, agora descansam no salão. Materialmente, sim. Simbolicamente, não. Ainda estão a povoar imaginações coloridas, cheias de ritmo, alegria, como um sorriso paralisado de Seu Limiro. O homem que diz não ser artista.

 

- Faço apenas uma aparência aí...

Cícero Félix é professor da UFOB, campus de Samavi, e publicou essa matéria na revista A, em abril de 2016.

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Máscaras e caretagem: o ensino de artes e as manifestações culturais da comunidade de Santo Antônio

por Lilia da Silva Passos Conceição

Desde os seus sete anos de idade Seu Limiro observa e se engaja na produção das máscaras produzidas pelos antigos “mascareiros”, através da observação e do fazer ele aprende na prática a confecção das máscaras da Caretagem

 

Seu Limiro ainda conta que antigamente muitas pessoas se  engajavam na produção das máscaras, e que elas seriam usadas por elas mesmas no dia da Caretagem. 

As máscaras são produzidas a partir de materiais diversos, sendo na maioria dos casos de objetos reciclados. Elas são afixadas em armações que chegam a até 1,70 m de altura com armação e 1 m de largura, e são compostas por figuras zoomorfas, figuras fantasiosas e, na minoria das vezes, figuras inspiradas em humanos. Elas não se repetem no ano seguinte, pois são produzidas máscaras novas e, em alguns casos, as máscaras velhas são desmontadas para que as novas sejam produzidas a partir do material retirado da que foi desmontada.

O único material que se é comprado por ele é a tinta óleo, que ele usa para colorir as máscaras, elencando o brilho especial que ela dá na obra. Os demais materiais ele enxerga em todos os lugares, pois utiliza de materiais reciclados e/ou encontrados na natureza. Ao ser questionado onde ele encontra materiais para a produção das obras ele responde: “Eu uso arranjado, como dizer do menino, arranjado no lixo, arrumo lá uma coisa tá por aculá por dentro de casa eu digo: sabe isso aqui eu vou colocar essa peça naquela coisa ai. Chego lá faz o teste e depois cê sabe que vai dar certo vai! E assim... outra hora eu chego lá na casa de um amigo digo:  “cê não vai usar isso aqui, não? não. então cê podia era me dar ele. Pra quê, moço? É só pra mim fazer uma experiência lá de uma coisa.” Eles dão ai chego e digo: “sabe, eu vou colocar essa peça nessa outra peça aqui pra vê se da certo.

Seu Limiro ao ser indagado onde ele encontra inspiração para fazer as peças, ele diz que tira da cabeça dele, que às vezes sonha ou, de vez em quando, vê alguma coisa num lugar e tenta fazer uma aparência daquilo. Mas isso não interfere na característica das suas obras, que são bem singulares:

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Eu olho, eu faço, eu coloco a cabeça no lugar e vou ver, vou ver se faço uma coisa ou outra, começo fazer e vou olhando, será se aqui compensa fazer? E vou reparando se dá certo, depois que eu fazer, passar um tempo se aquilo ali não tiver do jeito que eu tô achando que pudia ser, ai eu impugno aquilo ali e modifico aquela outra coisa ou então pego outra peça e coloco em cima daquele".

Seu Limiro

"Eu olho, eu faço, eu coloco a cabeça no lugar e vou ver, vou ver se faço uma coisa ou outra, começo fazer e vou olhando, será se aqui compensa fazer? E vou reparando se dá certo, depois que eu fazer, passar um tempo se aquilo ali não tiver do jeito que eu tô achando que pudia ser, ai eu impugno aquilo ali e modifico aquela outra coisa ou então pego outra peça e coloco em cima daquele".

Com orgulho afirma que na festa dele todo mundo sai feliz, que ele consegue agradar da criança ao idoso. Ele faz todo o cortejo da Caretagem soltando fogos, e com garrafas de bebidas que são dadas aos músicos e às pessoas que utilizam as máscaras durante o trajeto. E, mesmo tendo todo este trabalho de produção das obras e organização da Caretagem no geral (comes e bebes, ir atrás dos músicos, observar todo o movimento para fazer as correções necessárias), ele transfere toda a “glória” da festa ao espectador, aos músicos e às pessoas que se caracterizam das máscaras.

Ele afirma que mesmo produzindo tudo isso, a festa não aconteceria sem essas pessoas mencionadas, pois sem elas as obras dele seriam obras mortas e que, na Caretagem, as pessoas são as que dão vida para as peças de arte. É importante ressaltar essa visão que seu Limiro tem acerca do processo de construção de uma ação que, neste caso, a obra, a ação não se concretizaria sem a participação da comunidade, podendo afirmar assim a importância da comunidade na construção da obra.

Ao ser questionado sobre o seu medo seu Limiro afirma que o seu maior medo é morrer e não ter ninguém para fazer as máscaras e essa manifestação cultural, que ele chama de brincadeira, ter um fim. Ele diz ainda que só não parou de produzir as máscaras porque , caso ele pare agora, não haverá ninguém para continuar.

Lilia da Silva Passos Conceição é egressa do curso de licenciatura em Artes Visuais, campus SAMAVI, da UFOB. O texto acima é um pequeno recorte de seu TCC, defendido em 2019. Para acessar a versão completa clique aqui.

Documentários

Produzido por Justino Cosme Pereira dos Santos, “Seu Limiro das caretas, artesão de resistência popular” é um documentário produzido em 2019, para o curso de especialização em Produção Audiovisual da UFOB Samavi.

Filme produzido durante a pandemia por Cícero Félix e publicado na 2ª edição da Francisco. O documentário apresenta o último cortejo sob o comando de Seu Limiro.

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Seu Limiro, as caretas e o festejo de Sábado de Aleluia

por Justino Cosme

No arrebol do amanhecer, umas quatro, cinco horas em diante, no Sábado de Aleluia, ouvem-se estouros de rojões no povoado de Santo Antônio, no município de Canápolis (BA). De frente do salão/ateliê[i] e ao lado de sua residência, com fogos nas mãos, chapéu de massa na cabeça, sandálias nos pés e sacola plástica com bebidas, preso ao braço, seu Limiro[ii] prenuncia o início da brincadeira[iii] da caretagem[iv].

 

Ao ouvir o chamado, paulatinamente, os foliões do reisado e os brincantes das caretas vão chegando e se acomodando no recinto. Aqueles vãos pegando seus instrumentos musicais; estes vestindo as suas roupas, colocando chocalhos[v] na cintura e a máscara na face para sair e dá vida ao cortejo nas ruas sinuosas dessa comunidade e do Povoado de São Pedro (Açudina), no limítrofe município de Santa Maria da Vitória (BA). Aos poucos também, espalhafatosa, a população vai se acordando, acomodando, preenchendo o espaço vazio da praça, ansiosa e à espera das caretas. Contudo, soezmente, outras pessoas assistem encostadas no parapeito da janela, nas portas, calçadas ou por traz das cercas de arames das próprias casas.

 

Mas antes desse grandioso e, quase, inarrável acontecimento, bem antes da quaresma, seu Limiro sozinho crias obras, adquire as tintas para pintá-las e “dá o sopro divino”. Durante a madrugada do sábado, ladeado a Igreja Católica, apresta o sítio rural com troncos de bananeiras, feixes de canas-de-açúcar e palhas de coco, etc., onde servirá de cenário artístico para expor, preso a um pau, o boneco em chumaços, representando Judas Iscariotes. Após já ter sido escarneado ao longo do trajeto; chinfrinadas e provocadas por um turbilhão de alegria, sôfregas, as crianças o esganam ao término. Restando, intactas, somente as botas,[vi]postas como um trunfo, do que restou do facínora.

 

Ainda que a meninada e uma boa parte dos espectadores desconheçam, essa narrativa relembra e pressupõe o espírito de vingança da população contra o discípulo, pois ele foi o pérfido traidor de Jesus ao entregá-lo com o beijo na testa, em virtude de 30 moedas, para os soldados Romanos. Se Ele passou pelo calvário; atroz, o apostolo também deveria passar. Aliás, tanto o séquito, como as caretas e o boneco; segundo alguns estudiosos, de um jeito popular, recontam a passagem bíblica do Sábado de Aleluia, dia seguinte a crucificação de Cristo, porque as máscaras escondem a face dos algozes que vão esganar Judas e ninguém ficará sabendo, haja vista ter escondido a sua fronte ao dissimular ser também um leal seguidor. E, de certo modo, a malhação esboça a punição do traidor, ou seja, o princípio de justiça, feito com as próprias mãos.

Boneco de Judas levado por um folião que segue à frente do cortejo. Foto: Justino Cosme

 

 

 

Por conta própria, o diletante financia também o cortejo, ao comprar os fogos para soltar no percurso; bebidas alcoólicas e refrigerantes para distribuir aos acompanhantes durante e, posteriormente, o fenecer. E, após a malhação do Judas, ainda fornece o café da manhã em sua residência – regado a biscoitos, farofas de carnes bovina, suína e frango. Entre os dois arraiais, mais de trezentas pessoas participam da comilança, mesmo sem terem acompanhado o cortejo.

 

Ele urde as máscaras ao tirar o barro de cerâmica nas antigas olarias ou no fundo de sua casa[vii]. Após amassar no local onde retirou; leva-o para o ateliê e faz os moldes.

 

Quando estão secos – após dois, três dias ao sol – com tiras de folhas de jornais e livros didáticos (inservíveis) e goma (feita com água quente e tapioca); vai colando e fazendo camadas até que se crie uma espessura grossa e rígida. Em seguida, pinta com esmalte sintético e deixa secar de novo. Em regra, tem o costume de usar cores cambiantes e ardentes: vermelha, amarela, azul, laranja, verde e preta.

 

Observando que as máscaras cobrem somente a parte frontal; por vez, os bonecos confeccionados com o mesmo material (somado a restos de outros imprestáveis objetos e bugigangas) ficam justapostos as hastes de madeira, cobertos por caixa de papelão, etc., em que o folião enfia a cabeça e o escora sobre os ombros. Existem orifícios (olhos e bocas), de modo que o mesmo possa respirar e enxergar. Estes são mais pesadas que aquelas.

Moldes de barro para a construção das máscaras. Foto: C. Félix

 

 

 

Após o falecimento ou a desistência gradativa da plêiade na criação das peças e dos festejos, como, por exemplo, Antônio Moreira, Benedito, Antônio Trade, Hélio, Manoel Trade, Doda, Ermiro Dourado, Antônio Deoclides, Célio, Quidu, etc. É imperioso reconhecer que essa pitoresca tradição, nos últimos 35, 40 anos, só existe em razão da esmera dedicação e perseverança do mestre Limiro, tendo em vista lutar, incansavelmente, para continuar e manter vigorosa. Por compreender a relevância para acepção da identidade cultural, vez que a caretagem ocupa um espaço para além do território que circunscreve. Desse modo, com as mãos agrestes e seu olhar campônio, ele tem construído, desconstruído e reconstruído todo o espetáculo através de intensas relações sociais, políticas, culturais, econômicas.  Com a mesma sensibilidade de que cria peças, a poetisa Meireles nos alerta que: “... a vida, a vida só é possível reinventada”.

 

Ressalto, contudo, que, antigamente[viii], essa manifestação popular tinha outras plásticas e composições: tanto no que diz respeito à atmosfera do festejo, sentimento coletivo, quanto a urdira das peças, posto que os concêntricos artífices do Santo Antônio, bem como de São Pedro esmerilhavam as obras e juntos faziam os entrudos. Ao encerramento, disputavam para ver quem tinha criado peças mais originais, imponentes, articuladas e bonitas. Pardal (2006, p.149) diz que: “toda época tem uma certa visão de mundo, uma certa concepção das coisas que exprime sua alma profunda”.

 

À medida que as caretas de um povoado desfilavam nas ruas do outro, à população efervescente, que assistia atônita ou acompanhava o frêmito, julgava-o por meio de ovações, aplausos avivo e até mesmo vaias. Igualmente, a quantidade de fogos estourados, o café da manhã e a bebidas distribuídos serviam como parâmetro; de certa maneira, colocava em relevo o poderio cultural, econômico e político de um arraial sobre o outro. Malgrado, a ideia de pertencimento[ix], invariavelmente, sempre falava mais alto, independente da estética das obras ou do séquito.

Registro da caretagem provavemente na década entre as décadas de 1970/1980. Foto: Reprodução

 

 

 

Esta contenda servia como mola propulsora para que eles se esforçassem para fazer obras estrambóticas, buliçosas e bizarras e, por cima, mantivessem perene a tradição. Corolário disso, houve um período em que se construíram insólitos bonecos gigantes[x] e/ou teratológicos chupetas, “gaieiros”[xi]. Alcançavam mais de quatro, cinco metros de altura, em razão de ter arcabouços feitos de bambu ou caniços finos. De tão excêntricos e colossais, era preciso que mais de um brincante segurasse ou adentrasse para conduzi-los. Ao invés de denotar inabilidade, comprova a capacidade criadora, conforme Pardal (2006), ao discorrer sobre criação de obras mais primitivas.

 

Outras, não somente cobriam o rosto, porém, a cabeça como um todo: o folião enfiava-a na fantasia bojuda. Era impossível reconhecê-lo, vez que escondia perfeitamente a parte superior. Ainda assim, empanavam com roupas rotas (molambos), fitas e tiras de panos, que iam à metade das pernas.

 

Tudo isso fazia aumentar ainda mais a curiosidade do expectador, pois ele sabia que por traz daquela indumentária e máscara havia um conhecido. Contudo, não sabia quem era. Certamente, esse ocultamento servia como um chamariz ou um fetiche para fazer aguardar o término da patuscada.

 

Mota e Figueroa (2011, p.3) apontam que isso “revela o lado curioso da tradição, visto que ninguém sabe quem está por traz da fantasia”. Neste sentido, o expectador ansioso esperava para descobrir a identidade verdadeira daquele folião. Aos longos dos anos, um ou outro, mesmo sem querer, deixava antever sua verve, já que, outrossim, tinha seu jeito caricato de brincar.

 

Na atualidade, nenhum morador do povoado sabe precisamente quando começou a brincadeira. Sabe-se que há décadas. Aponta-se que há mais de cem anos. Somente o artista Limiro cria caretas e participa dos festejos mais de setenta anos; aprendeu quando criança, aos sete, nove anos, ao ajudar o artífice Antônio Deoclides, na colagem do grude e papel nos moldes de barro.

 

Malgrado, não lhe tem sido tarefa fácil manter a festa da caretagem, haja vista faltar sensibilidade, respeito e incentivo financeiro, por parte do poder político municipal e, grosso modo, o reconhecimento temeroso da própria comunidade[xii], haja vista não abraçar a pândega, desde a sua concepção embrionária. Parece ser contraditório, mas ela pressupõe que após o falecimento de seu Limiro, a tradição dessa cultura tende a se dissipar, haja vista não ter envolvimento de outros feitores.

 

Ainda que ele tenha um viés estético aguçado e humano; perceptível, sua senilidade impede de fazer o que fazia na mocidade, ainda mais por ser o único sobrevivente da vanguarda artística. Mesmo assim, afanado, mostra pertinaz e resiste às vicissitudes dos ponteiros do relógio; e todo ano, no Sábado de Aleluia, com ousadia, regozijo e satisfação, põe o seu “bloco” nas ruas poeiradas de vermelho.

Justino Cosme Pereira dos Santos é graduado em Letras e Pedagogia, especialista em Cultura Afro-brasileira e Produção Audiovisual e autor do documentário "Seu Limiro das Caretas: artesão de resistência popular".

Referência bibliográfica

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. Ed. Brasiliense. 13ª ed. São Paulo – SP, 2003

MEIRELIS, Cecilia. Vaga música. 2ª. Edição. Editora Global. São Paulo, 2013.

MOTA, Elisangela Barreto; FIGUEIRA, Fábio Costa. Os caretas de Ribeirópolis: resgando e preservando o patrimônio imaterial do município por meio das novas tecnologias. 2011.

PARDAL, Paulo, Carrancas do São Francisco. 3ª. Edição. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2006.

 

 

Notas

[i] Ao mesmo tempo em que é um ateliê é também um salão, esporádico, de festa.

[ii] Almir Vieira Farias, conhecido como eu Limiro, 83 anos, nasceu e criou no Povoado de Santo Antônio. Desde muito cedo, desenvolveu a atividade de lavrador e de artesão. Teve três filhos com a primeira esposa; outros dois com a segunda.

[iii]Sempre que a palavra brincadeira aparecer no texto, traz a memória do artista, vez que ele gosta de usar, ao falar da patuscada.

[iv] No Povoado de Santo Antônio, a palavra “Caretagem” refere-se ao cortejo das caretas no Sábado de Aleluia. Ou pode ter sentido próximo: “As caretas de seu Limiro”, “Festa das Caretas” ou “A festa da Caretagem”, etc. Contudo, resta salientar que seu Limiro apresenta suas obras em distintos lugares, fora do período sacro.

[v] À proporção que os homens vão andando, o repique dos instrumentos chama atenção.

[vi] Nas tradicionais e cálidas festas que ocorriam na Boate Riso ou Boate Três Irmãos, depois da meia-noite da sexta-feira, o homem que não namorasse,diziam que ia calçar as botas dos Judas, já que era impossível não namorar. A festa findava ao amanhecer, coincidindo com o prelúdio da caretagem.

[vii]No quintal existe uma pequena faixa de terra. No período chuvoso, o açude enche, depois ocorre à vazão d’água, deixando o solo fértil para o plantio: de mandioca, de batata doce, cana de açúcar, de banana, etc. Onde o barro também é retirado para as formas.

[viii] Não se tem intenção de fechar no conceito equivocado e tradicional do folclore, apontado por Brandão (2003). Em que se perdura a visão romântica como se a tradição não fosse modificada, ou seja, petrifica-se no espaço-tempo. Mas situá-lo diacronicamente, isto é, naquele período histórico. Não quer dizer que tal acontecimento deva seguir o mesmo rigor de outrora.

[ix]No documentário “Seu Limiro das Caretas”, é possível perceber que os entrevistados de ambas as comunidades, pertencentes aos distintos municípios, mesmo nos dias atuais, defenderem seu torrão.

[x]No aspecto dos bonecos das cidades de Olinda e Recife (PE).

[xi] Devido às diferentes deformidades e a enorme quantidade de bicos ou  chifres, assemelhando galhas de árvore.

[xii] Na sua humildade, seu Limiro sempre reconheceu e foi grato com as contribuições de algumas pessoas do Santo Antônio e também do São Pedro, ao doarem: frangos, fogos, bebidas, etc. Mesmo assim, são ajudas tímidas, se avaliar a envergadura do festejo, haja vista custeá-lo financeiramente mais de 60%. Salientando ainda que o folguedo não pertence somente as duas comunidades; de certo modo, atrai muitas pessoas e moradores de outros rincões, que vão ao povoado apenas por conta do evento. Indiretamente, a caretagem subscreve no calendário religioso e cultural da Semana Santa.

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O raizeiro

 

Além de mestre das caretas, Seu Limiro era conhecer das plantas do cerrado como poucos. Nos dois vídeos abaixo ele dialoga com seu amigo e ativista e pesquisador Hermes Novais sobre as características da canela de ema e batata de "tiú".

Inspiração

 

Mais que um artista, homem dos saberes dos antigos, Seu Limiro representa a ancestralidade inspiradora do território. Assim, ele tem se espalhado por desenhos, pinturas, xilogravuras e outras expressões artísticas.

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Linoleogravura "Fome de festejar" (2020), de Violeta Pavão. Divulgação

DEPOIMENTO

Em 2020, pude conhecer mais de perto o artista, agricultor e festeiro Limiro do Santo Antônio, em função de uma viagem para montar a exposição Além São Francisco na Galeria Cañizares, EBA-UFBA, em Salvador. Para a exposição coletiva, Seu Limiro trabalhou em mais de quarenta máscaras e três esculturas que abriam a exposição. Para chegar nos outros trabalhos, a pessoa visitante precisava passar pelo portal de caretas! O compromisso de um senhor de oitenta anos de idade com o fazer poético me encantou desde que vi a caretagem da comunidade de Santo Antônio, Açudina/BA, em 2019, mas se intensificou nesta viagem, em função da vivacidade com que o artista se envolvia com os seus e os trabalhos dos outros doze artistas, mesmo após percorrer 900 km do oeste baiano até a capital do estado. O que eu via era a energia de um corpo que já transcendia o mundo terreno.

 

Voltamos desta viagem em março de 2020 e logo a pandemia se alastrou no mundo e no Brasil. Após três meses em casa, brincar com uma das máscaras criada por Seu Limiro me parecia uma forma de acender a festa que não pode ser realizada em abril de 2020, na Sexta-feira Santa, como de costume para a Festa da Caretagem. Nesta brincadeira, cheguei à imagem “Fome de Festejar” gravada na matriz de linóleo e impressa em papel jornal. A obra foi entregue ao mestre que segue nos inspirando e ocupando espaços com sua luz. Sou honrada em ter te conhecido, Seu Limiro.

 

Violeta Pavão, professora de Artes Visuais da UFOB Samavi.

Estandarte inspirado nas obras de Seu Limiro, de Glécia Novais, estudade de Artes Visuais da UFOB Samavi. Reprodução

DEPOIMENTO

Nós conhecemos o Mestre Limiro em Junho de 2018. Mas precisamente no aniversário de Santa Maria da Vitória, em 26 de Junho. Num cortejo pelas ruas da cidade, onde também nosso filho João Guilherme teve o seu primeiro contato com um instrumento musical, o reco-reco. Daí passamos a ter mais proximidade com ele e passamos também a conhecer mais sobre o seu trabalho artístico que tem uma grande importância para o povoado de Santo Antônio e também ao território da Bacia do Rio Corrente. 

 

Tamanha era sua simplicidade e generosidade, que sempre o víamos sorridente, nunca reclamava da vida e nem tão pouco da falta de apoio do poder público que não entendeu e nem entende a importância cultural e patrimonial que tem cada obra deixada por este Mestre.

Suas obras também nos chamam para refletir sobre a preservação do meio ambiente, mostrando que de fato que a arte transforma.

 

Marcelo Apache e Rayane Radiola, artistas de Santa Maria da Vitória.

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Porque hoje é sábado

por Cícero Félix

Sábado. 18 de março de 2023. Acordei às 5h da manhã, como de costume. Abri o portão e olhei a rua a procura de seu Limiro. Todo sábado ele pega o transporte na roça, desce na pista e vem caminhando lentamente com bolsa, sacolas e um galão de água vazio. Quando seus chinelos se aproximam do chão, sobe uma poeira suave como se a terra abrisse passagem para seus passos. Ele chega ao portão e, antes de tocar a campainha, do outro lado Joaquim já reconhece e faz algo entre latir e uivar dando boas-vindas e chamando Amorilda e Luar para a recepção. Logo, os três, em latidos descompassados de alegria, avisam para toda casa que seu Limiro chegou.

 

“Cilço, como pode gente fazê mal a um vivente desse?”, refletia, retribuindo o carinho dos cachorros.

 

Esse sábado que passou não foi assim. Havia silêncio de latidos e vento com pouca coragem para roçar o chão. Olhei a rua e fechei o portão. Seu Limiro não viria. Na última quarta-feira, 15/03, ele sofrera um AVC isquêmico e foi hospitalizado em Canápolis. O Limirão de dona Honorina “arruinou”, como se diz no meio rural desse vale com as pessoas que adoecem de repente.

 

Conheci seu Limiro em 2016 através de um grande amigo, o pesquisador Hermes Novais. Na época, eu fazia um estudo etnográfico sobre as manifestações sagracionais do território e queria conhecer a caretagem que ele realizava no Sábado de Aleluia, nas comunidades de Santo Antônio (Canápolis), onde ele morava, e na vizinha São Pedro (Santa Maria da Vitória).

 

Fiquei impressionado com sua sensibilidade artística, a potência criativa e o ser humano por trás de tudo aquilo. Estava com 75 anos, 60 só de fazedor de caretas (máscaras) e bonecos articulados. Ele costurava, remendava, colava, amarrava, juntava pedaços de papel em moldes de barro para máscaras, pintava, cortava, rasgava... Ali, tudo tinha seu “digitório”.

 

Aquilo que para muitos era inservível, para ele milagrava aqueles seres fantásticos, aquelas criaturas mágicas de formas complexas. O salão de depósito para o cultivo da roça era seu ateliê. Nele, caretas e bonecos se multiplicavam com orelhas em vários desenhos, com um, dois ou três chifres, curvos ou retos, de todas as cores; capacete sobre a cabeça de um boneco equilibrava um helicóptero de isopor, o tecido do guarda-chuva se transformava em longos vestidos, sapatos calçavam pés virados para os lados opostos e para frente, tampas de garrafas pets arrematavam detalhes; cabeça de cabaça, cavalo com olhos esbugalhados, pássaros, boi...

 

Cada peça que seu Limiro produzia tinha uma personalidade própria, uma forma de interagir com o mundo através dos braços abertos, em espasmos, e das bocas abertas, como se estivessem a falar algo permanentemente para quem quisesse ouvir. Cada peça tinha o espírito de seu Limiro, que ressignificava seu saber com a experiência que adquiria no viver.

 

“Eu faço pra demudar de uma coisa, pra não ficar parecido a mesma coisa”, explicava. Ponto.

 

Disse que ele era um verdadeiro artista, ao que ele contestou:

 

“Faço apenas uma aparência aí...”, respondeu encabulado.

 

Desse primeiro contato, publiquei uma matéria na revista A sobre aquela espetacularidade que sacudia as duas comunidades rurais no Sábado de Aleluia. De lá para cá, nos tornamos amigos. Há uns quatro anos ele passou a nos visitar com frequência, aos sábados pela manhã. Tinha sempre um coração cheio, nunca vinha de mãos vazias. Trazia petas feitas com ovos de galinha de capoeira, batata doce, brevidade, biscoito de polvilho, galinha já tratada, pedaço de toucinho ou de um pernil de porco, uma farofa feita por ele, limão galego, massa de buriti, raízes e cascas de cura... Sempre trazia algo. Não sabia como agradecer.

 

“Nós é que agradece por tudo que ocês têm feito por nós”, respondia ele. Com a chegada da UFOB em Santa Maria da Vitória, seu fazer artístico despertou interesse dos professores e estudantes: em 2019, foi convidado a desfilar com suas caretas e bonecos na Festa Literária de Samavi; em 2020 foi a Salvador, para participar de uma exposição coletiva na Galeria Cañizares, da Escola de Belas Artes UFBA; teve trabalhos de conclusão de curso de graduação e pós-graduação sobre sua arte e, pelo menos, dois documentários em audiovisual.

 

No entanto, embora todo esse reconhecimento o deixasse gratificado, era na alegria do povo da comunidade, integrada aquele cortejo de seres limirenses e ao ritmo frenético do grupo com flautas, tambores, triângulos, pandeiro, atabaque e reco-reco que ele se realizava. Nada o deixava mais aprazerado do que ver as mulheres, crianças, jovens e homens brincando, se divertindo atrás daquele imaginário real,.

 

Com a covid-19, a brincadeira foi suspensa por dois anos, mas seu Limiro não parou de criar, a espera do retorno da caretagem.

 

“Vamo fazê um movimento aqui, Cilço mais Jairo, que o movimento nosso vai ficá na história pra região nossa aqui”, contou ele animado meses antes do retorno da caretagem, em 2022. De fato, como o próprio Lô atestou, aquela caretagem entrou pra história de Santo Antônio.

 

Daqui a alguns dias, em 8 de abril, será o Sábado de Aleluia. Dia da caretagem. Mas não haverá caretagem. Como não houve o café costumeiro nesse sábado. Lembro que quando seu Limiro chegava com toda sua generosidade no alforje de seu peito, eu oferecia uma água, pedia que ele se sentasse e ia preparar nosso café. Os cachorros ficavam ao seu redor a dialogar com ele, que se ria de afeto. Às vezes eu servia tapioca com manteiga da roça, ovos mal passados, pão com queijo assado no forno e, menos frequentemente, favada ou carneiro cozido com cuscuz, com coentro e cebolinha frescas por cima.

 

Esse era o primeiro café do sábado em Santa Maria da Vitória, o nosso primeiro tempo de prosa. Ficava a escutá-lo como quem contempla os mistérios da paisagem. Lidar com a linguagem de seu Limiro era um desafio que me deixava aprazerado. Sua fala era como um livro a ser lido, suas palavras e expressões eram pistas, sinais, códigos de seu mundo e, até conhecer um pouco desse mundo e desses signos de linguagem, tive dificuldade em compreender muitos de seus saberes.

 

O segundo café era na casa de Jairo e Norminha. Com seu jeito maroto, Joaquim acabou se tornando uma companhia frequente nessas visitas. Rodrigues (Jairo) servia café adoçado com rapadura e um pão que ele mesmo fazia, com queijo derretido por cima. Depois, servia um licor de genipapo ou uma cachaça – só pra gente! Limirão não bebia, mas gostava de participar do furdunço e acompanhar as prosas. Era um bom escutador, mas não se esquivava de manifestar sua cosmovisão sobre as coisas.

 

“Num ataiando a sua proposta que adiante vai...”, dizia ele interrompendo o interlocutor e emendando seu ponto de vista sobre o assunto.

 

Quando entrei no doutorado, em setembro de 2020, seu Limiro e Rodrigues passaram a me acompanhar nas visitas que fazia aos colaboradores de minha tese. Como isso enriqueceu a pesquisa! Andávamos por várias comunidades de Canápolis e, em muitas ocasiões, era seu Limiro que tomava as rédeas da conversa. Ele sabia os caminhos, os atalhos. Era cúmplice de muitas memórias, sabia cruzar os dados, questionar, direcionar a prosa e usar a linguagem certa para dialogar.

 

Nos cafés na casa de Rodrigues ficávamos ruminando nossas impressões e as conversas que a gente ouvia nessas visitas. Era preciso mastigar e engolir, e tornar a mastigar e engolir de novo tudo que acontecia naquelas andanças. Era uma forma de expandir o entendimento sobre aqueles enredos e narrativas rurais. Ficava impressionado como seu Limiro sempre acrescentava novos saberes a suas impressões. Tenho algumas desses apontamentos gravados em formato digital, mas foi no corpo que os registros daqueles momentos ficaram.

 

Hoje, terça-feira, 21 de março, dia em que meu pai está completando 91 anos e seu Né de Teodósio 85 anos, acordei às 4h30 da manhã. Li a mensagem de Joêmio no celular e paralisei: “Tio Limiro faleceu”.

 

Não contive as lágrimas. Depois, suspirei fundo e disse baixinho: “Descansou, meu amigo”.

 

Um dia, atento a uma narração de seu Limiro, notei que ele usava a expressão “plantar”, ao invés de “sepultar” ou “enterrar”. Aquilo, para mim, mudou a noção de viver e morrer, a relação do homem com a natureza, do homem com seu pertencer cultural e espacial; do homem com o tempo e com o ciclo da vida. Foi essa sabedoria que me ensinou a compreender o dia em que dona Pulu, dona Isabel e Julinho de Cainãna foram plantados.

 

Seu Limiro nasceu, será plantado logo mais, e continuará vivo, porque está no movimento circular do tempo, no movimento circular da vida.

 

Como diria ele nas suas pausas, “Né nada não...”.

Cícero Félix é docente do curso de Publicidade e Propaganda UFOB Samavi, pesquisador das manifestações sagracionais do Território de Identidade Bacia do Rio Corrente e amigo de Seu Limiro. Este texto é parte de sua tese mo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UnB.

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