Obra construída a partir de rostos e falas de mulheres envolvidas na luta por terra e água no Oeste, de Conchita Silva, é premiada na 64º edição dos Salões de Artes Visuais da Bahia.
por Redação
A obra intitulada ‘Desde a década de 70, prefiro...’ é um painel de xilogravuras de 1,26m X 2,10m com testemunhos de mulheres sobre os conflitos hídricos, territoriais e o sentimento de pertencimento ao território, marcado por injustiças sociais. Essa é uma definição simples para a obra de Conchita Silva, uma das 14 premiadas na 64º edição dos Salões de Artes Visuais da Bahia, que expôs obras de 42 artistas da Bahia, entre outubro e novembro, no Museu de Arte da Bahia, em Salvador, e terá uma versão itinerante em 2023.
Conchita é neta de geraizeiros, da comunidade tradicional de Fecho de Pasto e graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Oeste da Bahia. Atua como artista, educadora popular, professora da rede pública, cerrativista e é integrante dos coletivos 'Lambança' e 'Mulheres pelo Cerrado do Oeste da Bahia'. Suas xilografias, assim como essa premiada, retratam e homenageiam a luta dessas protetoras da natureza.
A compreensão dos modos de operação do capitalismo, racismo e patriarcado deu à artista propriedades para ela afirmar que as mulheres são as mais atingidas nesse contexto, quer seja no âmbito urbano ou rural. Ela explica que os rostos e falas das mulheres entalhadas na madeira de umburana disputam a narrativa com a história dominante e colonizadora, que coloca as populações de comunidades tradicionais como inferiores, subalternizadas.
Quando essas mulheres reconhecem seus corpos como políticos e reconhecem outros corpos como políticos também, estão construindo redes de luta e afetos, acredita Conchita.
A coragem, a representatividade e a afirmação das múltiplas identidades dessas mulheres me estimularam a escutar e registrar quem são elas e contribuir, por meio da arte, para a visibilidade de seus papéis na luta e resistência dos territórios correntinenses com seus rostos e vozes gravados em xilogravuras”.
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Conchita Silva, artista visual premiada
A artista correntinense enxerga a arte como um lugar de confluência de saberes, de denúncia, política e reconstrução das narrativas inviabilizadas por falas hegemônicas e dominantes, sobretudo no cerrado. Assim, com esse tema, ela já realizou exposições na UFU (MG), no Museu da Gravura (PR) e UFBA (BA).
Em 2018, foi premiada no 8°Prêmio IBEMA de Gravura, o mais importante da área. Ainda foi contemplada pelo edital da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, da Prefeitura Municipal de Correntina, o que permitiu a manutenção do trabalho de visibilidade da ancestralidade do seu território.
Obra "Entre a soja e o algodão na agricultura predatória do agro, Eu Sou o Serrado, Chicha", foi premiada no 8º Prêmio IBEMA de Gravura, em 2018. Fotos: Cido Marques
Rostos e falas
A palavra “prefiro” do título da obra é uma expressão muito manifestada pelas personagens do trabalho. “Prefiro… Prefiro não morrer, mas prefiro morrer lutando” é uma das afirmações escritas em letras manuais na xilogravura de Conchita que retrata Dona Ana, a agricultora familiar do município de Correntina.
A consagrada fala da professora do meio rural Marinês também compõe a obra: “Aqui é todo mundo de paz, Ninguém quer guerra. Só queremos nossos rios preservados, só isso. Ninguém vai morrer de sede nas margens do Arrojado, ninguém!”. A frase marca a luta da população de Correntina que protagonizou a “Revolta da Água” em 2017. O levante que conseguiu alcance na mídia nacional foi contra o manejo desordenado das grandes empresas produtoras de commodities e das fazendas que tiravam água dos mananciais para irrigação.
O painel também teve a inspiração da poetisa e também moradora e filha do Cerrado, Jaqueline Honório: “E não permitiremos que esse grito seja esquecido. Não permitiremos que esse grito morra. Porque não permitiremos que o nosso povo morra.”
Desde a década de 70, com a chegada e crescimento exploratório do agronegócio na região, que as mulheres protagonizam a luta das comunidades geraizeiras, de fundo e fecho de pasto e quilombolas que dependem da conservação da biodiversidade do Cerrado.
O delicado talhar sobre a umburana aos poucos dá forma e expressões de resistências cerranteses. Foto: Acervo pessoal Conchita
‘A responsabilidade da prática docente no deslocamento sudeste-nordeste’, obra de Violeta Pavão, artista e professora da UFOB, reflete o espaço de conflito na educação. Foto: Lucas Malkut
A arte na prática docente
Quem também expôs na 64º edição dos Salões de Artes Visuais da Bahia foi Violeta Pavão, professora do curso de Artes Visuais, da UFOB/Samavi, com uma instalação intitulada ‘A responsabilidade da prática docente no deslocamento sudeste-nordeste’, com 40 lanças de madeira aroeira e dimensão de 3m de altura, 2,3m largura e 1,5m de profundidade.
Nela, a concepção de território abrange aspectos geopolíticos de cruzamentos de fronteiras – a ideia do corpo enquanto território político e a perspectiva da prática docente como agenciadora de territórios de poder, uma vez que a sala de aula se apresenta como o espaço de trocas, conflitos, aprendizados e refazimento das fronteiras do poder e do saber.
O quase encontro das pontas afiadas e o movimento silencioso da obra nos convidam a olhar de perto as lanças que apontam para o centro da obra e para cada pessoa presente. A suspensão dos campos de tensão deseja acordar as práticas docentes dos corpos desses territórios e ativar o que bell Hooks nomeia como comunidade pedagógica, um encontro de corpos-territórios que exige esforço e entusiasmo para que seja um terreno de ações transformadoras.
A professora Violeta Pavão (E), representou Conchita Silva na entrega de premiação. Foto: Lucas Malkut
Violeta Pavão nasceu na Serra da Mantiqueira, vive no cerrado baiano e é professora-artista-pesquisadora. Seus trabalhos atravessam questões de gênero e sexualidade, deslocamentos de territórios, relações de poder e pedagogias decoloniais.
Trabalha há dez anos com performance e desenvolve criações através de instalações, gravuras, desenhos, fotografias, escritas e escutas. Recebeu o Prêmio Osório Alves de Castro - Lei Aldir Blanc (2020), Prêmio Funarte Artes Visuais - Periferias e Interiores (2018) e é graduada e mestre em Artes Visuais pela UERJ.
Registros da abertura da exposição no Museu de Arte da Bahia (MAB). Foto: Lucas Malkut
Os salões de artes visuais
Iniciativa da Fundação Cultural do Estado (Secult/BA), a proposta dos Salões de Artes Visuais é apresentar ao público a diversidade da atual produção baiana em artes visuais, divulgar e valorizar o trabalho de artistas também em início de carreira, além de estimular a reflexão sobre temas relevantes para o estímulo ao pensamento crítico contemporâneo.
Participaram da exposição coletiva dessa 64ª edição, 42 artistas de 25 cidades de todos os macroterritórios do estado da da Bahia selecionados via edital, dos quais 14 foram premiados. São eles: Alex Oliveira (J equié), Artur Soares (Lençóis), Cenildo Silva (Salvador), Conchita Silva (Correntina). Félix Caetanno (Santa Cruz Cabrália), Gabis (Tanque Novo), Nen Cardim (Valença), Vandro Oliveira (Vitória da Conquista), Marcos da Matta (Cachoeira). Mikas (Aramari), Sandra Silva (Feira de Santana). Ramilo Maxwel (Caetité), Talita Melo (Salvador) e Timóteo Lopes (Salvador).