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  • Paulo Henrique Martinez

Patrimônio bibliográfico ou quem (e por que) destrói livros das bibliotecas




 

Os livros impressos, para além de suas honrosas funções utilitárias, imediatas ou não, compõem um importante acervo de documentos e de testemunhos da cultura e da história das diferentes sociedades humanas. Por estas mesmas razões, livros são publicados, reunidos, preservados, difundidos, guardados, recomendados, cobiçados, emprestados, reeditados e, há que se dizer, controlados, proibidos, censurados e destruídos.

Livros despertam amor e ódio. Daí a sua persistente presença na vida cotidiana das pessoas, individual e coletivamente. Livros são portadores de sentidos humanos, desde logo, muito diversificados e complexos. Aqui reside um dinâmico núcleo de significados e da importância dos livros, sobretudo, quando adequadamente reunidos, organizados, conservados, consultados e acessíveis a todo e qualquer interessado, leitores e curiosos, grupos sociais e governos. Na história da expressão e da circulação cultural de narrativas, imagens, ideias e valores em práticas de escrita de livros e do público que lê, que gosta de livros ou ambas as sensações, os livros tocam a imaginação e as sensibilidades humanas.

O livro impresso é um produto cultural. É um objeto distinto da tela, de rolos de manuscritos em tecido, papel e pele, de registros grafados em rochas, moedas e placas metálicas ou de madeira. O livro impresso respondeu pela geração de uma cadeia de produção material e de sensibilidades, desde a sua concepção intelectual, passando pelo ato de escrever e o ato massivo da leitura, até a sua acessibilidade em diferentes suportes, formatos, cores, estilos de apresentação estética. Livros impressos resultam das artes gráficas, do design, da comunicação visual, da criação artística sobre papel e da impressão.

Por fim, e não menos importante, livros impressos são vetores dos processos sociais ao longo do tempo, movimentam ações, afirmações, símbolos, valores sociais e políticos muito precisos e concretos.

Livros ou a sua simples redação, quando não publicado ou editado, despertam o desejo e a prática da censura, da fogueira, da prisão, da agressão física e simbólica contra autores e autoras, leitores e leitoras, professores e estudantes, livrarias e bibliotecas, gráficas e editoras. Livros são palavras vivas e, por isso mesmo, migram com desenvoltura para a música, o teatro, o cinema, a televisão, o facebook, o podcast, o Tik Tok entre outros suportes de tecnologia da informação e da comunicação digital.

A presença do livro impresso em coleções, antiquários, bibliotecas, museus, instituições públicas e privadas, ergue materialidades próprias a edifícios, ambientes, mobiliário, instrumentos de escrita, edição, impressão e leitura, estratégias e técnicas de promoção da cultura letrada, em gabinetes e clubes de leitura, contação de histórias, feiras e lançamentos de livros, encontros, entrevistas e diálogos com autores e autoras, boletins periódicos, abrindo-se para outros tantos universos, como o infantil, feminino, étnico, LGBTQIA+, fantástico, religioso.

Espaços dos e para os livros, de e para as pessoas que giram em torno deles, convertem-se em núcleos de memória da multiplicidade de formas que o mundo dos livros assume em cada época, nação e sociedade. São pontos de partida para pesquisas de novas formas e experiências sensoriais, criadoras, imaginativas, lúdicas. Bibliotecas, suas estantes e acervos, seus equipamentos e profissionais, seus frequentadores e os curiosos, entram em interações contínuas, incessantes e infinitas.

O mundo do papel está acabando? Podemos descartar o livro impresso, consumi-lo e despedaçá-lo, instantaneamente, deixar de adquiri-los, de escrevê-los, de guardá-los? A ninguém mais será dada a oportunidade de lê-los e de relê-los, no futuro próximo ou distante? Há muitos livros sem leitores, o livro impresso tornou-se objeto de museu, deverá aguardar a próxima onda vintage ou retrô, será o disco de vinil do futuro?

Em bibliotecas, museus, escolas, tribunais, parlamentos, consultórios e escritórios, estantes particulares, livros e coleções de livros estão umbilicalmente associados a uma cultura republicana, a da liberdade, da partilha, da igualdade, da autonomia e da criatividade. A reforma protestante na Europa queria a Bíblia nas mãos de cada cristão e que este fosse apto para lê-la, interpretá-la e debatê-la junto com os seus irmãos de fé e de pregá-la aos infiéis.

O livro, seja impresso ou não, é sujeito e testemunho da história da cultura republicana, da vida e do bem comum partilhados sob a existência humana. A sua destruição, mutilação, abandono e desprezo são indicativos de uma cultura republicana incompleta, embrionária ou inexistente. Sejam as fogueiras que ardem pela intolerância política, ideológica e religiosa, sejam os grifos de canetas coloridas, marca-textos, rasgos, cortes, dobras, sujeira e amassados. O grau e as formas de agressão, de condenação e de rejeição aos livros impressos serão, sempre e apenas, sintomas de uma democracia sob risco e de uma cultura republicana que necessita ser ensinada, absorvida e promovida no dia a dia da sociedade brasileira, na ponta do lápis.


 

Paulo Henrique Martinez, é professor na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis e membro da Comissão de Biblioteca do campus.






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