por Renata Pinho
“Paulo Araújo é um cara solto, gosta da poesia, do singelo, do abstrato”… É assim que Paulo Sérgio Pereira de Araújo, poeta do Médio São Francisco, se define, mas gostaria de acrescentar outras individualidades deste que é considerado uma das grandes referências da arte e da cultura ribeirinha, do seu tempo.
Foto: Marcelo Abreu
Nascido e criado em Bom Jesus da Lapa, no Médio São Francisco, cidade conhecida como a “Meca do Sertão”, terra das romarias e das expressões da religiosidade popular, Paulo cresceu neste quintal de multiplicidade cultural: nadando nas águas do Velho Chico, cortando redemoinhos, aprendendo com a sabedoria milenar do povo beirador.
“Havia uma ladeira, nada de asfalto só pedra por conta do morro, ali formava os redemoinhos e a gente saia correndo “vamos entrar nesse portal pra ver onde a gente sai”. Quando a gente atravessava o redemoinho, a gente falava "chegamos!", com poeira nos olhos. A gente imaginava um lugar muito fantástico, isso menino ainda.”
Canção inspirada na infância ribeirinha
A história com a música começou ainda na adolescência, quando a mãe, dona Maria, o surpreendeu com um violão. O menino ficou contrariado, pois havia pedido uma bicicleta de presente de aniversário. Pois, mal sabia ele que ali começava uma jornada de descobertas e mergulhos profundos na cultura sanfranciscana.
Autodidata, Paulo aprendeu a tocar com o tempo. Já a sensibilidade para as composições nasceu com ele. O poeta faz do Rio São Francisco e do sertão baiano suas inspirações. O menino da rua do Pé do Morro, acostumado a ouvir as rezadeiras agradecer e pagar promessas, na Igreja da Lapa, levou todos esses elementos - visual, sonoro e espiritual - para as suas canções.
Não adianta só sair por aí cantando, não. É você trazer a história de um lugar, não é a minha história é a história do lugar. E esse lugar aqui [Bom Jesus da Lapa] é diferente, a gente tem sorte de ter nascido aqui. A mensagem que a natureza nos passa: essa pedra tá num vão, esse rio tá no sertão, na seca. Você percebe que você faz parte da poeira do lugar".
Clipe Cama de quiabento (Paulo Araújo e Morão di Privintina), resultado de TCC na UFOB
Para Paulo, a missão da sua música vai além da estética sonora. Arte é feita para fazer pensar, sair da zona de conforto e nos impulsionar a mudanças. Quando pergunto: sua música é uma forma de protesto contra as mazelas do rio? A primeira canção que Paulo comenta é a “Cama de Quiabento", uma poesia atemporal escrita há mais de 20 anos, que denuncia a degradação ambiental, a morte diária do Rio São Francisco e a invasão territorial das comunidades tradicionais pelos grandes latifundiários.
A música é uma carta aberta à comunidade. Para ele todas as canções são especiais, mas “Cama de Quiabento” se revela no refrão: “ponta de faca não escolhe valente, fico contente se você não brigar”. Ela se tornou objeto de pesquisa acadêmica da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB). Entre os anos de 2018 e 2019, estudantes do Curso de Publicidade e Propaganda desenvolveram um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em torno do universo da canção e das inspirações de Paulo Araújo. O resultado? Um videoclipe experimental, uma pesquisa robusta e um capítulo de livro, publicado no ano passado.
Clipe Nobre barranqueiro (Paulo Araújo e Morão di Privintina)
“Nobre barranqueiro”, canção que dá nome ao título desta matéria, é outra canção que faz parte desse imaginário. Uma relação de afetividade, e ao mesmo tempo, um símbolo da luta incansável pelo Velho Chico, fonte de vida dos ribeirinhos. “Ele alimenta, ele bebe. No sentido de manter viva as pessoas, a cultura e a arte do lugar. Aí você compreende que sair é só passar uns dias fora e voltar para dar continuidade àquilo que você sabe fazer para deixar para as pessoas”, afirma Paulo.
O ativismo social e a identidade arraigada neste lugar levou a arte de Paulo por muitos caminhos: um deles percorreu todo o país com “I-Margem”, música tema da “Velho Chico”, novela exibida pela Rede Globo em 2016. A mensagem de amor pelo Rio São Francisco ecoou os quatro cantos do Brasil e rendeu um contrato de direitos autorais de 10 anos com a gravadora Som Livre. O convite surgiu através de Edmara Barbosa, escritora da novela. Na época, ela visitava Bom Jesus da Lapa para uma pesquisa mais intimista sobre o Médio São Francisco. Foi nessas andanças que a autora conheceu nosso nobre barranqueiro. No início da conversa ela disse: “‘tenho apenas 15 minutos’ e no final passamos um dia inteiro de prosa”, lembra.
Começamos a conversar, isso umas 9h15, acho que ela esqueceu o tempo. Eu comecei a conversar de rio, de sertão e ela começou a prestar a atenção. Já eram quase cinco da tarde, cantei I-Margem. Aí quando eu cantei I-Margem ela falou: “você vai pra São Paulo comigo”. Eu falei: “eu vou!”. I-Margem trouxe o Velho Chico pras telas, quando ela foi levar o projeto todo mundo pirou com a canção”.
Clipe I-Margem (Paulo Araújo)
Foto: Jorgum
Arte do cartunisa Jô Oliveira. Reprodução
Paulo Araúyjo em cena de "Sede de Rio - Araú no Rainha do Porto. Foto: Marcelo Abreu
Contação de histórias na Ilha da Canabrava. Foto: Tom Purificação
O que mudou ao ver sua arte em rede nacional? Isso transformou algo? “Todo o Brasil conhece I-Margem. Quando eu fui pra Bienal do Livro, em Brasília, quando eu cantava I-Margem as pessoas vinham querendo saber do lugar, da canção. Os poetas, músicos querendo saber do lugar, da inspiração”.
Nessa prosa boa, cheia de memórias afetivas, algumas lágrimas e muitas risadas, Paulo falou, também, sobre a relação com o pai, Seu Doquinha. Recitou o trecho de uma música inédita chamada “Choro do Caminho” que compôs para homenageá-lo. Lembrou dos tempos de criança na comunidade Mundo Novo. Foi lá que nasceu o nome da sua banda, “Morão Di Privintina”, uma expressão usada pelos nativos do lugar para se referir a um “demarcador de territórios”.
Paulo segue com novos projetos, mas com os mesmos objetivos, sempre!
Eu tô num momento muito louco, em se tratando de arte, arte do meu lugar. Momento mágico! Só eu sei a loucura boa que é. Eu gosto de viajar nessas coisas, nessa sintonia... de cinema, de música, de escrita, de poesia. É meu universo!”
O documentário ficcional “Sede de Rio” faz parte dessa fase de “loucura boa”. O longa dirigido pelo diretor Marcelo Abreu e a Montanhas Filmes, conta a história de seu Nir e família, um pescador que mantém uma relação espiritual com o rio e todo ano paga uma promessa de barco, no Santuário do Bom Jesus da Lapa. O filme foi inspirado numa poesia de Paulo. Neste projeto, ele também se experimenta como ator, interpretando Araú, um pescador ribeirinho, amigo de seu Nir. O documentário deve ser lançado no segundo semestre deste ano. A parceria com a Montanha Filmes começou em 2017, com o documentário Orquestra do Mundo. O episódio "Íntimo Infinito” fala da relação de Paulo com a música. Vale a pena ver, disponível na plataforma de streaming GloboPlay.
Foto: Marcelo Abreu
Outra novidade da carreira de Paulo Araújo é o projeto “Boi da Privintina”: uma revitalização da cultura do “Boi Bumbá” da Lapa. Uma tradição que Paulo aprendeu com a família e, este ano, decidiu trazer a manifestação para as ruas de Bom Jesus da Lapa. O “Boi da Privintina" faz parte do projeto “Beirandar” e celebrou os 100 anos de Emancipação Municipal de Bom Jesus da Lapa. O Boi é elemento do imaginário popular da cidade, uma manifestação que se mistura com o reisado, a caretagem, o samba de roda e os sons da banda de pífano.
Aí a gente trouxe o Boi para uma sexta-feira que antecede a Festa do Divino Espírito Santo, por que a Festa do Divino abraça a cultura do lugar. É um grande encontro: traz todo o religioso, toda uma luta medieval, traz a cultura medieval, o índio e o vaqueiro”.
A obra artística foi confeccionada por Paulo e o artista plástico Lourenço Almeida, conhecido como Louro, com a ajuda da mãe e da irmã. Um trabalho feito por muitas mãos, assim como devem ser as manifestações culturais populares. Todo esse cuidado para o grande encontro que aconteceu no último dia 26 de maio. O cortejo do “Boi da Privintina” saiu da Praça da Catedral até a Praça do Livro. Lá, a dança do boi e o show de Paulo Araújo e banda Morão di Privintina marcaram o retorno dessa tradição que é patrimônio do povo lapense. O próximo passo agora é fazer desse dia, uma data fixa para celebrar o florescer do Boi.
E assim Paulo segue fazendo arte, sendo arte e se fazendo referência para as antigas e novas gerações. Ainda bem que podemos contar com a sua poesia, para que um recorte da nossa história não adormeça sem ser lembrada. Para o futuro? Paulo deixa um recado: “para que a arte e cultura sobrevivam depende de cada um de nós”. Então, que façamos acontecer!
Renata Pinho é publicitária, egressa do curso de Publicidade e Propaganda UFOB.