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ARTE E TRADIÇÃO CERAMISTA DAS MULHERES DE BARRA

por Jancileide Souza dos Santos

Artesãs modelam suas peças com técnicas seculares herdadas dos povos indígenas. Pesquisa destaca dois grupos da cidade barrense.

Abertura

O trabalho com a argila, com o barro, é um saber-fazer presente em quase todas as sociedades e uma das mais importantes manifestações artísticas, ao lado da tecelagem, de origem milenar. No Oeste baiano, região em que há indícios de produção ceramista feita por povos indígenas há séculos, as técnicas de produção legadas por esses povos ainda sobrevivem no uso de ferramentas e nos modos de fazer modelagem de potes, vasilhames e outros objetos de barro produzidos por artesãs, por exemplo, no município de Barra.

 

No final da década de 1960, ao descrever o uso do artesanato de barro no Oeste baiano, Wilson Lins destaca o valor dessa produção ao afirmar que a cerâmica da região tinha características distintas em relação ao que se produzia no contexto nacional naquela época. Na atualidade, a cerâmica do Oeste baiano é produzida nas cidades de Barra, Baianópolis, Angical, Correntina, entre outros municípios, sendo as criações de Barra e de Baianópolis as mais expressivas e difundidas na região. 

 

No município de Barra, os principais lócus de produção de cerâmica são: o povoado de Passagem; e a sede do município, que abriga dois grupos – um de cerâmica feita por artesãs na Associação de Cerâmica Comunitária Nossa Senhora de Fátima, e outro de imaginária religiosa, produzida no ateliê do artista José Geraldo Machado da Silva (Gerard). Neste texto, destaco a criação ceramista das mulheres da Associação de Cerâmica de Barra e do Povoado de Passagem, zona rural da cidade.

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Esculpido em 1833, para navegar a bordo do HMS Royal William, o Rei Billy, figura em tons vivos que representa William IV tem cerca de 4 metros de altura (Foto: Divulgação)

A tradição ceramista da cidade da Barra

 

Barra é considerada uma das cidades mais antigas do Oeste baiano, criada em 1752. Localizada no Médio São Francisco, Barra foi um importante centro comercial por ser um local de escoamento da produção do Oeste baiano e dos estados do Piauí, de Maranhão e de Goiás, em um período em que vapores e gaiolas navegavam pelas águas do rio São Francisco e comercializavam a cerâmica produzida em Caatinguinha, povoado onde residiam os oleiros da cidade de Barra e onde eram produzidos caqueiros, potes, filtros e moringas de barro, os quais, por sua vez, eram vendidos nas cidades de Bom Jesus da Lapa, Barreiras, Remanso, Juazeiro, Sobradinho, Pirapora, entre outras cidades por onde as embarcações passavam e levavam os produtos produzidos na região. Nessa época, a cerâmica produzida em Barra era bastante consumida pela população da região e das localidades vizinhas em torno do Vale do São Francisco. No entanto, com a modernização da cidade e a construção de estradas e pontes que facilitaram o trânsito de pessoas e o transporte de mercadorias, bem como com a seca do rio e a consequente diminuição da navegação no São Francisco, a comercialização de cerâmica foi reduzida de modo significativo.

 

Com os benefícios trazidos pela modernização da cidade, a partir da construção de pontes e da instalação de energia elétrica, a produção de utensílios domésticos de barro começou a declinar e a ser descaracterizada, o que afetou de modo negativo a vida dos artesãos de Barra. Carla Costa (2008), a partir de uma entrevista realizada com a artesã Eunice Batista Matos (dona Nicinha), em 2003, afirma que a alteração no padrão formal das peças de barro de Caatinguinha, provocada pela diminuição da vendagem de peças com a escassez dos vapores e das gaiolas, teve como consequência, naquela época, mudanças no estilo da cerâmica característica da comunidade, tanto que tal acontecimento levou as artesãs a denominar essa produção de louça de carregação, isto é, peças de barro destituídas de ornamentação, às quais faltava apuro técnico em seu processo de criação e que representavam objetos produzidos exclusivamente para armazenamento de água. 

 

A chegada da energia elétrica é outro fator importante que contribuiu para a redução da produção de potes e moringas, uma vez que esses objetos eram os mais produzidos pelas artesãs para o consumo de fazendeiros e moradores da zona rural, em uma época em que não havia energia elétrica para possibilitar o acondicionamento de bebidas e comidas na geladeira – os potes e as moringas eram importantes reservatórios de água e bons lugares para o armazenamento de alimentos.

 

Na atualidade, as modificações na dinâmica da produção ceramista de Barra têm sido geradas pela introdução, no mercado local, de produtos industrializados de plástico, objetos que vem substituindo o consumo de cerâmica na cidade.

Tradição ceramista
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A associção comunitária

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A arte da Associação de
Cerâmica Comunitária Nossa Senhora de Fátima

 

A cerâmica da Associação Comunitária Nossa Senhora de Fátima tem suas origens no povoado de Caatinguinha, considerado um dos mais importantes núcleos de cerâmica da região do São Francisco. De acordo com Carlos José da Costa Pereira (1957), o povoado estava localizado próximo ao distrito-sede da cidade e era habitado por pessoas de origem humilde, que ocupavam a área próxima da orla do rio. A maioria dos homens que residiam no povoado vivia da pesca, da pecuária e da agricultura, e as mulheres trabalhavam com a feitura de louças de barro. Carlos Pereira também aponta uma possível origem da cerâmica produzida naquela localidade como uma herança indígena dos povos da família Jê, os quais eram considerados “bons oleiros”. O autor ainda identifica a herança desses povos ao afirmar que os elementos decorativos, o modo de cozimento e queima, as formas das peças produzidas e as técnicas empregadas eram evidências dessa tradição indígena.

 

Em sua pesquisa sobre a cerâmica de Barra realizada originalmente em 1996, Ricardo Lima (2012) afirma que as artesãs da cidade situaram a produção de cerâmica em “tempos antigos”: elas sustentaram que o aprendizado da técnica de modelagem do barro foi herdado de suas avós desde tenra infância, o que levou o antropólogo a considerar a produção ceramista na região como uma manifestação secular, suposição colocada pelo autor devido à faixa etária das artesãs entrevistadas, as quais tinham entre 50 e 70 anos de idade.

 

Na Associação de Cerâmica Nossa Senhora de Fátima, a tradição de fazer louça de barro é passada de geração em geração por artesãs que aprenderam com suas mães, tias e avós as técnicas de amassar o barro e de modelagem e ornamentação das peças, saberes que na atualidade ainda são ensinados aos seus descendentes. No decorrer da pesquisa que realizei na Associação entre os anos de 2016 e 2018, identifiquei duas famílias de ceramistas que transmitiram seus conhecimentos para filhos e filhas, sobrinhos, noras, genros e netos: a família de Eunice Batista Matos (dona Nicinha) e a família de Antônia Cruz Leite.

Sede da associação, que tem suas origens no povoado de Caatinguinha, considerado um dos mais importantes núcleos de cerâmica da região do São Francisco. Foto: Jancileide Souza/2016

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Eunice Batista Matos, já falecida, era a mais antiga artesã da Associação e ensinou a técnica a Maria Aparecida dos Santos Araújo (Cida), a Leonor Pereira dos Santos Neta e a Laurenice Pereira dos Santos. Eunice era vizinha da mãe das artesãs e começou a tomar conta do irmão delas. Com o tempo e o fortalecimento da amizade, Eunice, que não teve filhos, tornou-se madrinha do irmão das artesãs e de Laurenice, a qual chegou a morar com dona Nicinha. Leonor e Cida afirmam que Eunice é considerada como se fosse da família. Já Antônia Cruz Leite não trabalha mais na Associação em decorrência da idade, mas ensinou a técnica a seu filho, o artesão Manuel Leite Junior, e a sua nora, Márcia Rodrigues Evangelista. Em 2016, ao realizar pesquisas na cidade, encontrei também trabalhando na Associação a artesã Elisabete Negreiro dos Santos, além da artesã Márcia Rodrigues Evangelista e do artesão Manoel Leite Junior. 

 

Da família de Eunice Batista Matos (dona Nicinha), boa parte das mulheres continua trabalhando e ensinando para os filhos, maridos e genros os conhecimentos sobre o manejo do barro. A artesã Leonor Pereira dos Santos Neta, por exemplo, começou a aprender a técnica ainda quando criança com Eunice, chamada de tia pelas artesãs. A filha de Leonor, a artesã Tamires dos Santos Ferreira, segue a tradição ceramista legada por sua mãe, assim como Laura Inácia, que também segue os ensinamentos de sua mãe, a artesã Maria Aparecida dos Santos Araújo (Cida).

 

A artesã Leonor conta que morava perto da Associação e observava aquele cotidiano em torno da produção de peças de barro. Além de Leonor, suas irmãs Maria Aparecida dos Santos Araújo (Cida) e Laurenice Pereira dos Santos também aprenderam a técnica com sua tia Eunice ainda quando crianças, como vemos nos relatos das artesãs e irmãs Leonor Pereira dos Santos Neta e Laurenice Pereira dos Santos sobre o processo de ensino-aprendizagem do fazer ceramista:

 

Na verdade, a gente começou criança ajudando os parentes, que eram a tia que trabalhava aqui, aí já ia amassando o barro, depois de um certo tempo, eu me distanciei, casei [...] e resolvi procurar outro emprego, achei ali na prefeitura pra varrer ali a praça [...] isso foi bem na época que estava dando um curso aqui, o Instituto Mauá patrocinou esse curso, e a finada minha tia Eunice, que estava dando na época o curso, me chamou, eu já tinha uns 19 anos e tinha duas crianças, só que como eu fui criada aqui dentro, já tinha mais ou menos noção da coisa, pra onde ia, já tinha ajudado aqui, a torrar os potes, amassar o barro, então eu tinha mais ou menos uma noção, só fui aperfeiçoar mesmo. Fazia os servicinhos básicos, que era botar a lenha para dentro, amassar o barro, lavar os potes, ajudar a carregar os potes para a beira do rio quando o barqueiro comprava, aí assim que eu comecei mesmo a sobreviver disso aqui mesmo de 19 a 20 anos."

(Relato de Leonor Pereira dos Santos Neta em 3 de abril de 2018).


Na verdade, aprendi com minha mãe, que já trabalhava aqui, e a gente ficava aqui brincando, brincando, aí com essa brincadeira a gente foi aprendendo, tomando gosto pela arte, porque eu gosto dessa arte que eu faço, um trabalho muito bom, um lugar que eu tenho calma também, gosto muito disso aqui."

(Relato de Laurenice Pereira dos Santos em 3 de abril de 2018)."

 

A memória sobre a criação ceramista é revivida pelas crianças nos locais de produção de arte, lugar onde as crianças aprendem a técnica por meio da brincadeira, da observação e da experimentação dos materiais. A artesã Laurenice Pereira dos Santos, por exemplo, em seu relato nos revelou que por meio da brincadeira começou a “tomar gosto pela arte”, do mesmo modo que as suas irmãs, as artesãs Leonor Pereira dos Santos Neta e Maria Aparecida dos Santos Araújo (Cida), colocam que a experimentação com o barro, quando eram crianças, levou-as ao aprendizado da técnica.

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Processo criativo

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Os desenhos nas peças de barro e o uso de ferramentas, pigmentos argilosos e técnicas atestam um modo de criar e fazer cerâmica herdado, provavelmente, de povos originários que habitaram a região no passado, saberes que sobrevivem nas mãos de afrodescendentes, sujeitos de origem humilde que vivem do seu trabalho manual. Podemos dizer que graças à presença da mão de obra negra que as técnicas de produção de origem indígena têm sido preservadas em muitas comunidades na atualidade, de modo que é possível afirmar que o intercâmbio entre culturas indígenas e africanas está presente na criação artesanal.

 

A pintura dos exemplares de cerâmica de Barra tem como característica o emprego de mais de duas cores na superfície, as quais são extraídas de pigmentos argilosos. Entre os engobos mais utilizados pelas artesãs, isto é, as camadas de barro colorido aplicadas na decoração das peças, estão o branco da tabatinga, termo de origem indígena que significa argila branca, e o amarelo do tauá – argila retirada da beira do rio São Francisco, a qual após a queima adquire tom avermelhado. 

 

A quantidade da matéria-prima utilizada na produção de cerâmica dura um bom tempo. O barro utilizado para a modelagem de potes e miniaturas, segundo Leonor, “se não for para fazer peça grande, uma caçamba dá para trabalhar por quase dois anos”. Em relação à argila amarela, Leonor coloca que “o tauá a gente pega na beira do rio, naquele lugar onde as balsas escavacou tudo, a tinta branca a gente pega um balde e dá para um ano todo, essa daí [o tauá] você pega um carrinho de mão e também dá para um ano todo”. Tanto a tabatinga quanto o tauá são chamados pelas artesãs simplesmente de tinta branca e tinta vermelha. Para ser transformado em pigmento, “o tauá é molhado e esfregado”, e a substância pode ser conservada por três anos, diz o artesão Manuel Leite Junior. Depois desse processo, as artesãs colocam a mistura do barro em um recipiente e a utilizam para decorar as peças com a ajuda de uma talisca de buriti.

 

A forma e o estilo da cerâmica de Barra estão implícitos nas peças, e, por meio delas, é possível observar uma relação entre o estilo empregado pelas artesãs e o universo de criação artística de povos originários que habitaram a região. Nas superfícies das cerâmicas de Barra, as artesãs realizam desenhos com formas esquemáticas simples, muitos dos quais estão impressos na memória delas. Assim, alguns desenhos transcendem o tempo, como o bordado, espécie de entrelaçado de linhas que lembra a estrutura de uma rede ou de uma esteira, e os caracóis, espirais estilizados. Sobre o emprego do bordado e dos caracóis, Maria Aparecida dos Santos Araújo (Cida) comenta que 

 

[...] a gente chegou e já achou, a gente só foi aperfeiçoando um pouco. Quando a gente chegou aqui, esta tia nossa que já faleceu [Eunice Batista Matos – dona Nicinha], ela já fazia esse bordadinho, esse aí foram elas que inventaram. As rodelinhas a gente dá o nome de caracol, quando nós chegamos nós achamos também.

O PROCESSO

 

1) Acordelamento de pote de cerâmica;

2) Brunimento com a espatula pela artesã Leonor Pereira dos Santos Neta;

3) Decoração com o tauá com a ajuda de uma talisca de buriti;

4) Pote decorado com caracóis e padrões espiralados.

Foto 1: Catálogo Louça de perfeição/Ricardo Lima - Foto 2, 3 e 4:Jancileide Souza/2016 e 2018

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Os caracóis ou espirais são desenhados em variados tamanhos e nunca representados isoladamente, sempre aparecem unidos pelas pontas a outro caracol ou a um conjunto de caracóis, de modo que são colocados em proporções maiores quando ilustrados como elementos principais da decoração de um pote ou jarro, muitas vezes mesclados ou unidos a outros desenhos, principalmente de folhas e flores. Quando ilustrados em tamanhos pequenos, os desenhos são aplicados em tampas, bordas ou orlas de miniaturas e potes, associados ou não a outros desenhos. 

 

Entre outros padrões utilizados pelas artesãs de Barra, estão as ramagens, as quais são representadas em formas geométricas, como linhas retas, curvas, zigue-zagues, assim como formas mais orgânicas, principalmente de folhas. As flores também se constituem um padrão muito empregado pelas artesãs de Barra. Podemos dizer que os padrões e as formas da cerâmica da Associação Comunitária Nossa Senhora de Fátima têm uma morfologia geométrica que permite uma variedade de aplicações, bem como uma morfologia mais orgânica, ou seja, de representações que aludem às formas de organismos vivos, como flores e folhas. Os padrões decorativos geométricos e orgânicos são característicos tanto da produção ceramista contemporânea como da produção mais antiga na Associação.

 

A modelagem de um vasilhame ou de um pote de cerâmica tem início com uma bola de barro, que pouco a pouco é modelada com as mãos e os dedos até que a espessura e a forma desejadas sejam obtidas. Essa técnica aparentemente simples chegou a um alto nível de sofisticação entre as ceramistas de Barra, as quais realizaram verdadeiras obras mestras em modelagem, que se destacam pelo seu alongamento e harmonia das paredes. 

 

As artesãs não utilizam o torno para modelagem das peças e empregam sabugo de milho, espátula, cuia de cabaça ou um pedaço de plástico resistente para brunir as superfícies, isto é, realizar o polimento ou alisamento das peças. Leonor comenta que as artesãs da Associação empregam “serra velha, faca de cozinha, alguns pedaços de chapa que a gente vai na serraria e pede para o rapaz modelar mais ou menos do jeito que a gente quer, colher que já quebrou, é isso”. A artesã diz também que:

 

[...] continua utilizando a talisca de buriti, palito de picolé. O buriti está muito difícil, porque na época em que o rio enchia o pessoal ia pegar umas estacas nas balsas, e desfazia aquelas balsas lá de longe de buriti, quando chegava na beira do rio deixava aqueles buritis velhos, aí era onde a gente pegava, agora tá difícil, a gente usa várias vezes, um dia um menino arrumou um pra mim, eu trouxe e estava até um pouco podre, a gente também usa uns pauzinhos de picolé, dá para usar também.

 

O arqueólogo Carlos Etchevarne (1994) coloca que a modelagem de vasilhames de cerâmica, assim como o acordelamento, técnicas construtivas que podem ser consideradas tradicionais, são empregadas por oleiras na Bahia. A técnica de acordelamento consiste em abrir um bolo de barro com as mãos para produzir uma forma de “cobra” ou roletes, utilizados para “levantar” os potes. Os roletes são superpostos para dar forma às peças – geralmente, as artesãs utilizam essa técnica no acabamento da boca de vasos e potes, método também conhecido como “tirada”. 

 

A influência indígena na cerâmica produzida nas regiões Norte e Nordeste, segundo Carlos José da Costa Pereira, tem como característica o uso de um pedaço de cuia para o alisamento das superfícies. Carla Costa, em sua dissertação de mestrado sobre a cerâmica de Barra, descreve os implementos utilizados na feitura da louça de barro nessa localidade e mostra a diversidade de ferramentas para polir, raspar e alisar a cerâmica – entre eles, os cascos de cuia de coiteba utilizados para a modelagem da parte interna dos potes, assim como o sabugo de milho, para nivelar as partes interna e externa dos vasos. Esses implementos também são utilizados pelas artesãs de Baianópolis e atualmente ainda são empregados pelas artesãs de Barra, embora algumas ferramentas não sejam mais usadas pelas ceramistas devido à escassez da matéria-prima utilizada na confecção dos instrumentos para modelagem e acabamento, principalmente o buriti e a cabaça.

 

A queima das peças é realizada a “fogo descoberto”, também conhecido como “forno sertanejo”, o qual possui uma estrutura simples, feita de tijolos e cimento, e há apenas uma boca para entrada da lenha (em alguns casos, encontramos duas bocas) e uma abertura na parte superior onde são colocadas as peças de cerâmica.

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FORNOS

 

1) Três fornos sertanejos em registro de 2018;

2) Artesãs Elisabete Negreiro dos Santos (Betinha) e Laurenice Pereira dos Santos dispondo peças no “forno descoberto”, na década de 1990.

Foto 1: Jancileide Souza/2018 - Foto 2: acervo da Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Rio de Janeiro.

Universo criativo: temas e inspirações

 

A artesã Leonor Pereira dos Santos Neta revela dados sobre os temas presentes na Associação de Cerâmica Comunitária Nossa Senhora de Fátima, os quais, segundo ela, são uma tradição antiga, mas na qual as artesãs introduziram algumas inovações:

 

Na verdade, isso é tradição, que a gente chegou já achou, a gente só muda um pouco as ramagens, as peças novas que a gente inventou foi a casinha, foi o barquinho, mas a peça de tradição que é o pote, a moringa e o caqueiro, esse aí quando a gente chegou já achou esse desenho.

 

Os novos temas utilizados pelas artesãs na produção de cerâmica refletem o cotidiano de sua comunidade. Como Barra é uma cidade ribeirinha, localizada às margens do rio São Francisco, nada mais natural do que o imaginário das artesãs estar povoado de imagens de remeiros, pescadores, barcos, carrancas, peixes, lavadeiras, como coloca Leonor:

 

A única coisa que inspira aqui são os barquinhos que a gente faz, o pescador, eu andei fazendo umas lavadeiras também, mas parei, nunca mais eu fiz, ou então as bonecas com os potes carregando água também, é coisa que a gente já via no cotidiano. [...]Eu tenho mais miniaturas, a travessa, o jogo de tigela, a moringa-mulher, o barquinho, eu faço pote também, é porque para queimar essas coisas tem que ter o pote, não bota essas peças só, eu faço cada coisa um pouco.

 

Além das peças figurativas, como as galinhas e patas, que são uma tradição na Associação, as artesãs também produzem conjuntos de chá e café, travessas e miniaturas de diversas tipologias.

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Povoado de Passagem

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A arte do povoado de Passagem

 

Passagem é um povoado situado na zona rural de Barra, nas margens do rio São Francisco, próximo à cidade de Xique-Xique. Há dois caminhos que dão acesso ao povoado: um deles percorre uma estrada de barro, geralmente em condições difíceis de tráfego, e o outro é realizado por meio da travessia do rio São Francisco, a partir da cidade de Xique-Xique. 

 

A origem de Passagem é situada por volta de 1820, de acordo com a narrativa sobre a fundação do povoado relatada por Laurita Lacerda Freire, presidente da Associação Beneficente Mãos Dadas de Passagem, nascida no povoado em 1954, a Elizabete Mendonça e Ricardo Gomes Lima (2003). O povoado, antigamente, era uma fazenda de criação de gado e de extrativismo da carnaúba, que pertencia aos irmãos Roque, Tubalda e Maria, e um dos pontos de travessia ou passagem do gado pelo rio São Francisco. 

 

Nessa comunidade ribeirinha do São Francisco, vivem cerca de 66 famílias, e o sustento dos habitantes do povoado provém da extração de matérias-primas naturais, como a mandioca (aipim) e o barro. A criação ceramista de Passagem se destaca da produção de outras localidades porque as artesãs produzem panelas de barro e jarros em grandes dimensões e não trabalham com miniaturas. Na comunidade, os homens pescam e cultivam a mandioca para fazer farinha, e as mulheres cuidam da roça, da casa e da produção de cerâmica. As técnicas e os processos criativos com o barro são tradições de criação ceramista transmitidas entre gerações por mulheres na comunidade. Essa tradição foi introduzida no local ao final do século XIX pela artesã Joaquina Pereira de Brito, conhecida como Bidu, filha de Isabel e neta de Maria, a primeira proprietária da fazenda que deu origem ao povoado. Joaquina (ou Bidu) ensinou a técnica a Joana Barbosa, considerada a mais antiga artesã do povoado, que faleceu em 1983 aos 90 anos de idade. 

 

O ensino-aprendizagem da arte ceramista em Passagem não é, exclusivamente, uma pedagogia de herança familiar, passada de mãe para filha. A artesã Nair Ferreira dos Santos, por exemplo, que foi mestre de muitas artesãs da comunidade, aprendeu com Francisca Simão, considerada sua tia, mas não por laços consanguíneos, e repassou o conhecimento do ofício para Deltrude Xavier dos Santos (Dé), com 59 anos de idade em 2018, e Adélia Rodrigues Soriano (Gôda), artesãs que ficaram responsáveis por transmitir o conhecimento do manejo do barro para as outras gerações de ceramistas . 

istas que transmitiram seus conhecimentos para filhos e filhas, sobrinhos, noras, genros e netos: a família de Eunice Batista Matos (dona Nicinha) e a família de Antônia Cruz Leite.

Registro de 2012 das artesãs de Passagem. Foto: Catálogo Ribando potes: cerâmica de Passagem, 2ª edição.

Das mulheres que trabalham na atualidade com a cerâmica no povoado, destacamos os nomes de Deltrude Xavier dos Santos (Dé), Adilma Pereira dos Santos (Dina), Josiene Santos Brito (Ziene), Reinilda Ribeiro Xavier (Nidinha), Maura Pereira de Brito da Guerra, Marli Ribeiro Xavier e Jovenila Xavier dos Santos (Vani). As artesãs Alzira Pereira de Brito, Adélia Rodrigues Soriano (Gôda), Antônia de Brito da Guerra, Ana Martins de Brito (Nô), Maria da Soledade Martins de Brito (Dadinha), Natalina Ribeiro de Brito e Laurita Lacerda Silva não exercem mais o ofício.

 

Para a artesã Deltrude Xavier dos Santos (Dé), o interesse das mais jovens da comunidade em aprender a técnica ceramista é um sinal que aponta para a continuidade da tradição de Passagem. Dé acredita que aprender a técnica ceramista na atualidade tem sido um modo de obtenção de renda para as jovens do povoado, diante da falta de oportunidades de trabalho na comunidade.

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Processo criativo

 

Em um galpão as artesãs realizam as distintas etapas do processo de criação ceramista, como o trabalho de modelagem, de engobo (pigmentação de toda a superfície da cerâmica) e de bordado (denominação dada pelas artesãs aos desenhos aplicados nas peças). O barro utilizado pelas artesãs é extraído em terrenos localizados próximos às roças e, depois de coletado, passa por todo um processo que envolve a secagem do material, seguida da etapa em que ele é socado e peneirado. Após essa etapa, o barro é umedecido em um tanque e deixado de molho por um dia até formar uma massa pastosa. Nessa massa, é adicionado pó de cupinzeiro queimado, o qual é socado em um pilão e empregado pelas artesãs para dar mais consistência ao barro, um procedimento singular na comunidade. Dessa mistura resulta, então, a massa empregada pelas artesãs para a modelagem da cerâmica. As artesãs realizam todas as etapas do processo, mas os homens ajudam a coletar o barro e a lenha, além de auxiliar na queima e no alisamento das peças.

 

Após a mistura da argila com o barro queimado, as artesãs iniciam o trabalho de modelagem da massa pastosa. O barro é amassado com as mãos das artesãs até formar uma massa uniforme. Em seguida, as artesãs começam a ribar as peças, ou seja, dar forma aos objetos, “levantar os potes”. 

 

Depois que levantam as peças, as artesãs empregam uma espécie de molde para apoiar as obras – na verdade, tratam-se de potes de barro que não têm mais utilidade, porque racharam ou apresentaram algum defeito –, assim como também utilizam um balde de plástico como forma. As artesãs revestem este molde com um tecido e colocam a peça nova que começou a ser produzida, de cabeça para baixo, em cima desse pote/forma para realizar o acabamento do fundo dos objetos. 

 

Após um tempo, as artesãs removem o objeto colocado nas formas e dão continuidade ao levantamento das peças a partir da técnica de rolete. Quando terminam de “levantar” o pote ou a peça de argila, as artesãs começam a lisar as superfícies com um sabugo de milho ou um caroço de manga.

 

Depois de lisar as peças, tem início a etapa de secagem. Primeiro, as artesãs colocam as peças no sol para secar até a argila endurecer, mas por pouco tempo para não ocorrerem fissuras. Em seguida, elas deixam a peça secar na sombra. A artesã Adilma Pereira dos Santos (Dina) comenta como é árduo o trabalho de modelagem: “no dia de fazer, passa quase cinco dias, dez dias fazendo, no dia de queimar, é só um ou dois dias”. 

 

Depois da secagem das peças, as artesãs aplicam o engobo nas superfícies, isto é, a pintura com o tauá, pigmento de cor amarela que adquire tom avermelhado após a queima. O tauá utilizado pelas artesãs é retirado das barrancas do rio São Francisco. Após a aplicação, as peças são colocadas novamente para secar no sol. Após a secagem, as artesãs realizam o polimento das peças com a ajuda de um tecido seco, para garantir que a superfície dos potes e dos outros utensílios fique bem lisa. A partir dessa etapa, elas começam a realizar os bordados ou desenhos nas peças. Os bordados são realizados com a ajuda de um pincel de madeira produzido pelas artesãs. O pincel é envolvido, em sua ponta, com uma gaze. As artesãs utilizam a tabatinga, pigmento mineral de cor branca, para realizar os desenhos. A tabatinga é amolecida na água e depois coada para retirar toda a areia.

 

Os bordados realizados atualmente nas peças de cerâmica não são, exclusivamente, uma tradição herdada. Algumas das mulheres aprenderam a fazer os desenhos conforme os modelos utilizados pelas antigas artesãs, outras não conseguiram reproduzir os mesmos padrões. Boa parte dos desenhos realizados pelas artesãs são de folhas, ramos e flores, além dos desenhos de formas espiraladas. Os espirais são padrões utilizados pelas antigas artesãs, como é o exemplo das peças produzidas por Adélia Rodrigues Soriano (Gôda, 65 anos) e Nair Ferreira dos Santos (71 anos), artesãs vivas mais antigas de Passagem e que não estão mais em atividade. Esse padrão ainda é empregado na atualidade por artesãs do povoado. Elas realizam os desenhos em moringas, travessas, caqueiros, panelas, alguidares, farinheiras, cuscuzeiros, boiões, potes, entre outros. Geralmente, o fogão e alguns dos potes não recebem os desenhos.

 

No povoado de Passagem, a queima da cerâmica era realizada conforme uma antiga tecnologia indígena, a conhecida queima “a céu aberto”, também denominada de “queimador” pelas artesãs do povoado, modalidade de cozimento de argila encontrada em algumas localidades do país, como no bairro de Coqueiros, em Maragogipe, no Recôncavo baiano. Esse processo de queima tem origem ancestral, e sua técnica consiste em empilhar galhos de madeira sobre o solo, onde ele é coberto com chapas de latas de flandres e, por cima destas, são depositadas as peças. Depois desse processo, a lenha é colocada em cima das peças e coberta com folhas de flandres para garantir que o fogo não se disperse e queime todos os objetos de modo igualitário. A lenha é queimada até alcançar uma temperatura ideal para o cozimento das peças. Esse tipo de queima conferia às peças tonalidades azuladas ou enegrecidas, uma característica da tecnologia milenar de queima indígena. 

 

Desde 2002, as artesãs do povoado de Passagem aprenderam a utilizar o forno para a queima das peças por meio do projeto Cerâmica tradicional do Médio São Francisco: povoado de Passagem, Barra (BA). O forno possui uma abertura na parte inferior, onde é colocada a lenha, e uma abertura em formato circular na parte superior, onde as peças são colocadas para a queima. 

 

A sobrevivência da arte ceramista na cidade de Barra ocorre devido a um processo de ensino-aprendizagem familiar, no qual as mulheres transmitem a memória dos rituais de criação para as novas gerações. Por esse motivo, as artesãs da cidade têm um importante papel na preservação e na salvaguarda da memória coletiva de suas comunidades, pois, de geração em geração, essas mulheres conservam, adaptam, reinventam e transmitem para as suas famílias, através da oralidade e de gestos, técnicas, soluções, ferramentas, padrões, matérias-primas, cores e formas empregadas ao longo do tempo na criação artística. 

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REFERÊNCIAS

 

COSTA, Carla Cristina Coêlho da. A cerâmica da Barra: transformações e representações. 2008. 161 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. 

 

ETCHEVARNE, Carlos. Acerca das primeiras manifestações ceramistas na Bahia. In: ALMEIDA, Marlice. ETCHEVARNE, Carlos. Cerâmica popular. Salvador: Instituto Mauá, 1994. p. 28-45.

 

LIMA, Ricardo Gomes. Louça de perfeição: a cerâmica baiana do município de Barra. Pesquisa e texto de Ricardo Gomes Lima. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 1996.

 

LIMA, Ricardo Gomes. Louça de perfeição: a cerâmica baiana do município de Barra. Pesquisa e texto de Ricardo Gomes Lima (1996) e atualização por Raquel Dias Teixeira (2012). 2. ed. Atualizada. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2012.

 

LINS, Wilson. O médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros. 3. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1983.

 

MENDONÇA, Elizabete; LIMA, Ricardo Gomes. Ribando potes: cerâmica de Passagem. Pesquisa de Elizabete Mendonça e Maria José Chaves Ramos. 1. ed. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2003. 

 

MENDONÇA, Elizabete; LIMA, Ricardo Gomes. Ribando potes: cerâmica de Passagem. Pesquisa de Elizabete Mendonça e Maria José Chaves Ramos (2003); atualização por Raquel Dias Teixeira. 2 ed atualizada. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2012.

 

PEREIRA, Carlos José da Costa. A cerâmica popular da Bahia. Salvador: Livraria PROGRESSO Editora, 1957.

 

PEREIRA, Carlos José da Costa. Artesanato e arte popular: Bahia. Salvador: Cadernos de Desenvolvimento Econômico, Serie III, Caderno 1, 1957.

 

SANTOS, Jancileide Souza dos. Arte, memória e re-existência:  a criação artesanal das mulheres no Oeste baiano. Tese de Doutorado (PPGAV/EBA/UFBA), 2020.


Depoimentos 

Laurenice Pereira dos Santos. Depoimento oral em 3 de abril de 2018 (anotações/gravação).

Leonor Pereira dos Santos Neta. Depoimento oral em 3 de abril de 2018 (gravação). 

Maria Aparecida dos Santos Araújo (Cida). Depoimento oral em 3 de abril de 2018 (gravação/anotações).

Manoel Leite Junior. Depoimento oral em 15 de julho de 2016 (anotações/gravação)

Jancileide Souza, professora do curso de Artes Visuais, campus SAMAVI, da UFOB.

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