por Cícero Félix
Este ano se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna, manifestação artístico-cultural que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo e propunha uma arte “mais brasileira”. Porém, muito antes de 1922, longe dos grandes centros urbanos, no Médio São Francisco, já se fazia arte moderna brasileira. Segundo o professor da USP Lorenzo Mammi, o carranqueiro Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany “possivelmente foi o primeiro artista moderno da arte popular brasileira”. Conheça mais sobre a história dessa escultura que foi símbolo de um período da história mística do rio São Francisco.
Esculpido em 1833, para navegar a bordo do HMS Royal William, o Rei Billy, figura em tons vivos que representa William IV tem cerca de 4 metros de altura (Foto: Divulgação)
Cronologia das figuras de proa
As figuras de proa ocupam lugar especial no imaginário dos navegadores desde a Antiguidade em países da Europa, África, Ásia e Oceania. Ao longo dos séculos elas se transformaram, ganharam novos significados e foram reinventadas no rio São Francisco.
No principal estudo sobre essas esculturas, Carrancas do São Francisco, o museólogo e historiador Paulo Pardal classifica as figuras de proa como primitivas, eruditas e populares, na concepção ocidental da história da arte. Nas primitivas, produzidas principalmente entre a Antiguidade e a Idade Média, havia uma prevalência por figuras de animais como cavalo, cisne, leão, urso e íbis.
Esse animismo aponta para a relação mística que os humanos tinham com os animais e os deuses. A figura de proa, portanto, para além de adereço, é parte da embarcação, é a cabeça de um enorme corpo de animal, deus ou deusa que navega a seu ritmo.
Em homenagem às divindades, essas figuras de animais poderiam garantir “boas graças às expedições náuticas” para o enfrentamento do desconhecido. Elas poderiam, também, identificar o país a que pertencia a embarcação ou referenciar uma personalidade.
Na Idade Média os vikings se destacaram com suas figuras fantásticas. Eles usavam imagens de dragões, serpentes e cavalos. Essas peças, “conforme descrições da época, eram em muitos casos cobertas de folhas de ouro”, explica Pardal.
Nos século XIII e XIV as figuras de proa quase desapareceram por mudanças na arquitetura naval. Com a marcante expansão marítima dois séculos mais tarde, as figuras voltaram a ocupar lugar de destaque nas proas. Agora, com caráter mais decorativo que sobrenatural, a exemplo do Rei Billy (foto), com quase quatro metros de altura, esculpida em 1833.
A partir daí, talvez influenciado pela Renascença e posteriormente pelo Iluminismo, as figuras de proa passaram a ser produzidas por escultores com aprendizado formal nos cânones da arte greco-romana, diferenciando-se dos artesãos ou artistas autodidatas.
Figuras de proa no Brasil
Os registros mais antigos de embarcações brasileiras com esculturas na proa datam do século XVIII, com figuras fantásticas: a nau São Sebastião (1767), ornada com a figura de um dragão e uma galeota construída em 1773 no Pará, como uma sereia à frente.
No estilo erudito destacam-se as figuras de Dom Afonso (1847), D. Januária (1842), Almirante Taylor (sem data definida, mas provavelmente mais antiga que a de D. Januária) e a de uma mulher de corpo inteiro (foto) com dois metros de altura, que se encontra da Fundação Chalita de Maceió. Vale mencionar ainda a figura Lara II, um busto sem braços de uma embarcação afundada em 1839, no Ceará. Esta figura, segundo Pardal, é um exemplo de arte popular urbana, “na qual se reproduzem, simplificadamente, obras eruditas para um público ‘predominantemente urbano, semiletrado y tendente a la masificación’”.
Em fins do século XIX inicia no Médio São Francisco um movimento de uso generalizado de figuras de proa, também chamadas de figuras de barca, cara de pau ou leão de barca. Produzidas com essa finalidade até a década de 1940, elas foram utilizadas nas barcas até 1955 e ficaram conhecidas popularmente como carrancas.
Segundo Pardal, a estética daquele tipo de figura de proa inédito em todo o mundo se deu devido ao isolamento em que viviam os povos são-franciscanos daquela região. Assim, surgiram as carrancas:
(...) peças de olhos esbugalhados, misto de homem, com suas sobrancelhas arqueadas, e de animal, com sua expressão feroz e sua cabeleira tipo juba leonina."
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Paulo Pardal,
do livro Carrancas do São Francisco
Carrancas e suas lendas
Certa vez fui ao mato tirar pau pra fazer um molinete de moenda. Venho sozinho numa canoa e passei por um bandão de pedra do rio Corrente. Tinha uma pedra. Estava lá a cabeça de um menino marron-escuro, cabeça pelada, parecendo cabeça brilhosa, dentadura alva na cara. Tinha forma de gente e parecia uma criança de quatro para cinco anos. Notei que tinha uma espécie de barbatana no braços."
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Guarany,
em depoimento a D. Martins de Oliveira
CARRANCA
Curta ficcional digido por Wallace Nogueira e Marcelo Matos de Oliveira, rodado em 2014, em Santa Maria da Vitória (BA), trata da lenda do Nego d'Água.
Não se sabe precisar o aparecimento nem quando as figuras de proa começaram a circular nas barcas do rio São Francisco. Pardal supõe que elas surgem a partir da “imitação da decoração de navios de alto-mar, vistos nas capitais da província da Bahia e do país”. Foram citadas pela primeira vez em uma publicação de 1888, por Durval Vieira de Aguiar, que registrou: “na proa vê-se uma carranca ou grypho de gigantescas formas”.
As primeiras figuras de proa tinham por provável função demonstrar prestígio e indicar a propriedade da embarcação. No entanto, por alguma razão inexplicável do imaginário ribeirinho elas acabaram assumindo a guarda sobrenatural da embarcação.
Conta a lenda que “o padre Paulo Afonso, acompanhado de um índio ou, segundo outros, de uma índia por quem se apaixonara, descia o rio quando o barco entrou numa grande corredeira onde pereceram, batizando-se a corredeira de Cachoeira de Paulo Afonso”. Isso teria acontecido pela ausência da figura na proa na barca, que teria dado seus providenciais três gemidos diante do iminente perigo. Assim, o padre foi castigado por sua descrença na figura de proa.
Ainda sobre as figuras mitológicas são-franciscanas, Deocleciano Martins de Oliveira, escritor, escultor e desembargador barrense, colheu na década de 1950 o seguinte depoimento de Guarany, o renomado mestre das carrancas do Médio São Francisco, de Santa Maria da Vitória (BA): “Dois cidadãos que tinha aqui, de Cabrobó para baixo matou um Caboclo-d’Água e enterrou na terra. O Delegado de Cabrobó quis processar eles: É mesmo o formato de um homem negro, sem nenhum cabelo, de pele enrugada, escamosa”.
Guarany fala ainda de outras figuras lendárias do rio: “Existe o Minhocão, mas nunca vi. Só o efeito. É uma grande minhoca preta que derruba barreira. Fica fuçando até chegar ao ponto da barreira cair. Tem mais grande e mais pequeno. Existe também o Mussungão, que é boa isca para peixe. É uma espécie de minhoca grande”.
Nêgo d'Água, no São Francisco mais ao lado do Juazeiro (BA), mais ao lado de Petrolina (PE) tem uma escultura de Iara no rio. Foto: CBHSF - Tanto Expresso/Juciana Cavalcante/Reprodução / encurtador.com.br/fQST7
A arte sai da proa
Nas três primeiras décadas do século XX o Médio São Francisco vive o auge da navegação de barcas, emponderadas com as figuras de proa a velar em defesa das embarcações, passageiros e tripulantes. De acordo com Pardal, “nos tempos modernos, as únicas embarcações populares de povos ocidentais que apresentaram figuras de proa de forma generalizada foram as barcas do rio São Francisco”.
“O barqueiro era um comerciante ambulante que subia de porto em porto vendendo sal ou tecidos de importação, e descia em sentido inverso, mercadejando gêneros de produção local. Assim, uma barca passava às vezes seis meses para ir de Juazeiro a Barreiras e regressar”, conta Pardal, que complementa: “O progresso tecnológico, a propulsão a vapor e motor a explosão teriam que ditar a morte das barcas, mais cedo ou mais tarde”.
Nos anos 1940, com a adoção das embarcações mais leves e motorizadas, a regulamentação do tráfego pela Capitania dos Portos e as leis trabalhistas implantadas pelo governo Getúlio Vargas, que regulamentavam horários e retribuições dos remeiros, o comércio realizado pelas barcas se torna insustentável e entra em decadência. É nesse período, precisamente em 1946, que os fotógrafos franceses Marcel Gautherot e Pierre Verger percorrem o rio São Francisco interessados na paisagem do modo de vida dos ribeirinhos. Nessa viagem, Gautherot registrou trinta figuras de proa no Médio São Francisco.
Marcel Gautherot fotografado por Pierre Verger, em expedição pelo rio São Francisco no ano de 1946. Gautherot deu uma imensurável contribuição para o registro histórico dessa cultura são-franciscana
No ano seguinte, em agosto de 1947, a revista brasileira de maior circulação na época, O Cruzeiro publica fotos de cccna reportagem “Carrancas de proa do São Francisco”, assinada por Theóphilo de Andrade. Apesar de a expressão carranca ter sido usada em 1888 para se referir à figura de proa, é a partir dessa reportagem que a figura de barca são-franciscana passa a ser conhecida de fato como carranca.
Embora o autor da reportagem não atribua valor artístico às carrancas (“como são pobres e feias”, “uma tentativa de arte plástica dos rudes carpinteiros que as construíram”), a originalidade daquelas esculturas ganhou reconhecimento nacional, o que promoveu a produção de novas peças, mas agora para colecionadores e turistas, e não mais para barqueiros.
“Por sua qualidade estética, pelo ar de mistério que cerca sua origem e seu significado e por não haver nada parecido em outros lugares do mundo, as carrancas assumiram então um valor emblemático, como produto mais representativo de uma cultura espontânea e autóctone”, diz o professor Lorenzo Mammi, doutor em filosofia e crítico de arte na abertura do livro “A viagem das carrancas”, publicado em 2015, por ocasião das exposições homônimas realizadas no Instituto Moreira Salles (RJ) e Pinacoteca do Estado de São Paulo no mesmo ano, com fotografias de Gautherot e esculturas de vários mestres.
Com o reconhecimento das carrancas, os mestres autores, que não assinavam suas peças, aos poucos foram sendo revelados. Pardal destaca dois: Francisco Byquiba dy Lafuente Guarany, de Santa Maria da Vitória, o expoente da arte carranqueira do Médio São Francisco, e Afrânio, de Barreiras, que antecedeu e inspirou Guarany.
Revista de maior circulação na época, a edição 45 de 1947 trouxe reportagem em oito páginas sobre as carrancas, com foto de Gautherot. Nessa matéria não há nenhuma referência aos escultores.
Exposição A Viagem das Carrancas, na Pinacoteca de São Paulo, em 2015. Destaque para as obras do mestre Guarany. Foto: Elias Rovielo/reprodução/Flickr
Afrânio: a primeira referência
Afrânio é uma espécie de lenda entre os escultores de carrancas, um mestre “quase mítico”. O que se sabe dele é o que foi contado por Guarany: era negro, alto, tinha o hábito de beber, morava em Barreiras do rio Grande (BA) e era bem mais velho que o mestre santa-mariense. Assim como vários escultores da época, a exemplo do próprio Guarany, Afrânio também era imaginário, o que justifica a qualidade plásticas das cabeleiras implementadas nas carrancas.
Guarany não sabe precisar que idade tinha quando conheceu o então famoso mestre Afrânio, mas era muito moço. O encontro entre os dois se deu em Barreiras e certamente marcou a arte de Guarany, de modo que Pardal alega que “é oportuno patentear a originalidade do estilo de Guarany, referenciando-o com o de outros escultores de figuras de barca, dentre os quais avulta Afrânio”.
As obras de Afrânio foram produzidas entre o final do século XIX e início do século XX. Entre as poucas reconhecidas de sua autoria está a enorme carranca da luxuosa barca Minas Geraes. “Trata-se de uma peça magnífica”, disse Pardal, sobre a escultura que parecia representar um cavalo. “De vigorosa e original concepção e com traços bem marcados, denota ser obra de um artista popular de grande inspiração e habilidade técnica; sua qualidade de imaginário se confirma observando na carranca os cabelos humanos, bem penteados”.
Para Mammi, a obra de Afrânio ocupa um lugar à parte entre as carrancas fantásticas. Sobre essa da Minas Geraes ele faz as seguintes observações: “É evidentemente obra de um artista de forte personalidade, totalmente distinta da do mestre Guarany. A morfologia de base é do cavalo, e não do leão, embora se trate de uma peça ‘fantástica’, com traços antropomórficos (o nariz, as sobrancelhas). Mais exatamente, parece uma fusão entre um cavalo e um dragão chinês: características marcadamente orientais são as linhas onduladas contrapostas que desenham a cabeleira, as sobrancelhas e os lábios; olhos esbugalhados, com íris salientes, e cantos de boca recurvados, para indicar ferocidade; linhas de expressão realizadas por breves incisões paralelas. A obra evoca o Oriente, mais em geral, a tendência a resolver a composição inteira num conjunto calibrado de ritmos lineares ondulados”.
Pardal atribui também a Afrânio as esculturas de um leão-cão e uma peça zooantropomorfa que se encontra no Museu da Marinha do Rio de Janeiro. Sobre a segunda peça, Mammi considera a atribuição problemática e explica: “em primeiro lugar, a qualidade inferior e a ausência de traços orientais; além disso, a carranca do Museu da Marinha é uma das poucas, senão única, a não ser esculpida num único bloco de madeira – a calota cranial, em particular, é montada a partir de peças separadas, e as orelhas, também não esculpidas no bloco, mas aplicadas posteriormente, se perderam”.
Em recente pesquisa na internet encontramos o registro de uma outra peça atribuída a Afrânio. Trata-se de uma figura zooantropomorfa navegada em pequena canoa da década de 1940. Segundo informações do site do Espaço de Artes Miguel Salles, esta carranca foi a leilão em 2016.
OBRAS
Carrancas atribuídas a Afrânio: 1) leão-cão, 2) peça zooantropomorfa do Museu da Marinha e 3) escultura que foi a leilão em 2016. Guarany ainda atribui ao mestre barreirense as carrancas das barcas Turiaçu e São Salvador, das quais não se tem registro fotográfico.
Essa peça fantástica de Afrânio, "fusão entre um cavalo e dragão chinês", é uma das carrancas mais famosas, pela sua qualidade e originalidade. Navegou na famosa barca Casa Vermelha, que depois se chamou Minas Geraes. Fotos: Marcel Gautherot/reprodução e reprodução do livro Carranas do São Francisco
Guarany, o expoente da arte carranqueira
Até o início da década de 1940 foram produzidas cerca de 120 carrancas no Médio São Francisco, das quais 80 só do mestre Guarany, segundo cálculos de Pardal. Último dos seis filhos de Cornélio Biquiba Dy Lafuente e Marcelina do Espírito Santo, Guarany nasceu em 2 de abril de 1882, embora no registro conste 1884, onde hoje é a cidade de Santa Maria da Vitória. À época chamada de Porto, a vila gozava de “um animado commercio, um excelente porto frequentemente visitado por barcos de todas as procedências e que fazem ali grandes negócios”, segundo Durval Vieira de Aguiar, em Descrições práticas da província da Bahia, de 1888.
Cornélio era um reconhecido marceneiro construtor de barcas quando Guarany nasceu. Ao filho, ele deu dois nomes: Francisco Biquiba Dy Lafuente, no registro, e Guarany, apelido para o dia-a-dia. Assim ele estava completo, no papel e na vida. “Dy Lafuente” vinha de seu bisavô espanhol, e “Biquiba” da sua bisavó moçambicana, ambos da linha paterna. Por parte da mãe, que era neta de índia do Paraguaçu, ganhara o “Guarany”. A partir de 1963, quando começou a assinar suas peças, escrevia “F. Guarany”.
Inspirado pelo ofício do pai, ele começou a esculpir imagens de santos, passou pela carpintaria, marcenaria fluvial, foi tanoeiro, fazia madeiramento de telhados, oratório, mas foi na arte produzir carrancas que se notabilizou como escultor. Fez sua primeira figura de barca em 1901, para a barca Tamandaré. “Era um busto de negro, ou de caboclo”, disse Guarany a Pardal.
Mestre Guarany viveu 103 anos. Até os 101 ele ainda manuseava suas ferramentas de artesão em sua oficina em Santa Maria da Vitória (BA). Fotos: Reprodução/Autor não identificado
Guarany esculpiu sua última carranca navegável em 1945. Com a paralisação da construção de barcas a partir daí, Guarany ficou sem esculpir carrancas até 1953. Quando retornou à produção, as carrancas já tinham outro destino (a utilidade artística) e outro interessado, que não eram os barqueiros, mas os colecionadores. Entre os primeiros compradores dessa “nova” carranca estão Antônio Laje, Agnaldo Manuel dos Santos e Deocleciano Martins de Oliveira.
“Frente ao refinamento linear de Afrânio e à contenção clássica da carranca Capichaba [famosa barca] e seus similares, a produção de Guarany pode até parecer maneirista. Mas é incomparavelmente mais rica não só em número, como em variantes e soluções arrojadas: justamente porque bebe de várias fontes, não se pode detectar nele uma influência dominante. Guarany é um inventor. Deve-se a ele a criação do tipo fundamental da carranca são-franciscana: nem aterradora nem cordial, nem homem nem bicho, mas um pouco de tudo isso, graças a um equilíbrio sempre muito bem calculado de elementos discordes”, explica Mammi.
Para Pardal, “o elemento plástico mais característico da escultura de Guarany é o tratamento que dispensa à cabeleira das carrancas, espessa ou em relevo acentuado, abundante, cobrindo quase todo o pescoço”. Ele classifica as obras de Guarany em três fases: na primeira, “a cabeleira tinha um estilo que chamarei em corda, pois se assemelha a um conjunto de cordas grossas, justapostas”, semelhante “à cabeleira de uma santa baiana, do século XVII; na segunda, “suas esculturas apresentaram uma quebra ou onda, no sentido longitudinal do pescoço, na altura de cara orelha, quando está em sua posição correta na cabeça humana; e, terceira, “após 1950, quando produziu para colecionadores”.
Sobre todo esse processo, Pardal conclui que os primeiros quarenta anos de experiência de Guarany deixaram em suas peças um importante subsídio espiritual em suas peças, embora atenuadas com a perda da função original: “os olhos são menores, pois já não têm a função de espantar duendes, e os dentes são mais numerosos e destacados, virtuosismo decorrente de sua consciência de artista, o que não lhes tira, contudo, a expressividade e a originalidade”.
Fazer essa boca não é vadiação, não”, declarou Guarany. “Sempre fui caprichoso nos meus trabalhos”
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Em 1977, 11 carrancas de Guarany participam do II Festival de Artes e Cultura Negras da Nigéria. Nesse mesmo ano é fundado o Comité International pour l’Étude des Figures de Proue, em Paris, patrocinado pela Unesco e presidida por Liliane Bedel, entusiasta da obra do mestre santa-mariense, que teve algumas expostas na inauguração.
Diante de tal reconhecimento, escreveu Drummond, em a Alma do navio, artigo publicado no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro: “Pois é. Quem diria que as carrancas antropomórficas de Francisco Guarany saltassem das águas do médio São Francisco para a contemplação europeia, e fosse hoje motivo de interesse mundial? Nada de surpreendente, no entanto. Ele soube captar não só a alma do navio, como também, e principalmente, a alma da gente que vive à beira das águas do velho Chico, já agora despojada de seus símbolos místicos e religiosos, mas conservando no coração uma semente de magia que lhe dá força para viver. Ou sobreviver”.
Segundo Jairo Rodrigues, professor de história e guardião de um valoroso acervo memorial da oficina de Guarany, da carranca Bitazaro a várias ferramentas, o mestre exerceu a arte de esculpir carrancas até meados de 1982. Em 1985, aos 103 anos, ele faleceu em Santa Maria da Vitória (BA).
Em 2022, o Brasil vai celebrar 100 anos da Semana de Arte Moderna, a Semana de 22, movimento urbano de intelectuais de São Paulo que propunha uma ruptura com o tradicionalismo cultural associado às artes acadêmicas. Essa ruptura, no entanto, já singrava as águas do rio São Francisco antes desse marco oficial inscrito na cronologia da história da arte brasileira.
“Francisco Guarany nasceu em 1882. Era quatro anos mais velho que Tarsila do Amaral; sete a mais que Anita Malfatti; catorze a mais que Volpi e Guignard. Não foi um artista ‘erudito’, mas, à maneira dele, foi um artista moderno. Em um país geográfico e socialmente descontínuo como o Brasil, a modernidade se deu em várias camadas. Uma cultura insulada, mas poderosa, como a do médio São Francisco, foi capaz de produzir uma tradição figurativa própria”, diz Mammi, que defende: “Possivelmente, [Guarany] foi o primeiro artista moderno da arte popular brasileira. A devoção que lhe dedicava Agnaldo dos Santos, outro artista popular especialmente consciente, talvez deva ao fato de reconhecer nele um predecessor, se não propriamente no estilo, certamente na atitude”.
Entre esculturas, fotos, filmes e poema
Exposição A viagem das carrancas, em 2015 (Foto: Elias Rovielo/Reprodução/Flickr)
Exposição A viagem das carrancas, em 2015 (Foto: Elias Rovielo/Reprodução/Flickr)
Exposição A viagem das carrancas, em 2015 (Foto: Elias Rovielo/Reprodução/Flickr)
GUARANY
Registro sobre a obra de Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany. Breve historico de sua vida e a importância de seu trabalho na arte brasileira.
CARRANCAS DO CORRENTE (PARTE 1)
Documentário produzido entre 2005 e 2006, por Keliton Xavier. O filme apresenta as carrancas e principais carranqueiros de Santa Maria da Vitória (BA).
CARRANCAS DO CORRENTE (PARTE 2)
Documentário produzido entre 2005 e 2006, por Keliton Xavier. O filme apresenta as carrancas e principais carranqueiros de Santa Maria da Vitória (BA).
Centenário
Carlos Drummond de Andrade
Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany
conjurou os seres malévolos das águas.
Com o poder de suas mãos meio espanholas,
meio índias, meio africanas,
totalmente brasileiras.
Das mãos de Guarany surdiram monstros
que colocados na proa dos barcos
protegiam os viajantes contra os terrores do rio.
Eram monstros benignos, conjunção de forças milenares
enlaçadas na mente de Guarany.
As águas purificaram-se, as viagens
tornaram-se festivas e violeiras.
E ninguém temia a morte, e o louvor da vida
era uma canção implícita no cedro das carrancas.
Os tempos são outros. Onde as carrancas?
Onde os barcos, as travessias melodiosas de antigamente?
O rio São Francisco está sem mistério e poesia?
A poesia e o mistério pousaram
no rosto centenário de Francisco, irmão moreno
do santo de Assis, também ele miraculoso,
pelo poder de suas mãos calejadas e criadeiras.
(Poema publicado por Carlos Drummond de Andrade no livro "Amar se aprende amando", de 1985, em homenagem aos 100 anos no mestre Guarany.
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REFERÊNCIAS
Foto de abertura: Reginald Gorham/Reprodução - Juazeiro, 1917.
ANDRADE, Carlos Drummond. Centenário. In: Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record, 1985.
Guarany 80 anos de carrancas. Fundação Roberto Marinho. Rio de Janeiro: Berlendis & Vertecchia Editores Ltda., 1981.
MAMMI, Lorenzo (org.). A viagem das carrancas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro, Instituto Moreira Salles, 2015.
PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. 3ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Cícero Félix, professor da UFOB.