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Ádma Bernardino Magalhães* e Napoliana Pereira Santana**

A oralitura e a poética musical de Chico de Helena, do quilombo Rio das Rãs

POETA, MÚSICO E EXÍMIO CONTADOR DE HISTÓRIA, CHICO DE HELENA GINGA NA RODA DE SAMBA COMO SE FOSSE UM JOVEM DE 92 ANOS DE IDADE.




 

Pau prereira, pau pereira

é um pau de opinião

todo pau enflora e cai

só o pau pereira não

[...]

Samba negro que branco

que branco não vem cá

se ele vim ele cai

na cama de ar

(Chico de Helena – Música Pau Pereira, 1954)


Essa música é de autoria de Francisco Ferreira Magalhães, ou simplesmente Chico de Helena, nascido em 16 de outubro de 1929, no quilombo de Rio das Rãs, localizado no munícipio de Bom Jesus da Lapa (BA). Além de poeta e músico, ele é um exímio narrador, ou melhor dizendo, um griot, daquele em que a memória se encarna não só pela voz, mas por todo o corpo através das gestualidades. Ao narrar, é um corpo em performance.


É uma das referências culturais e de saberes ancestrais de sua comunidade dada a sua criatividade artística, sua capacidade mnemônica e de contar histórias com tamanha riqueza de detalhes que o ouvinte se transporta para outros tempos: “nos tempos dos antigos...”, como costuma dizer. Dos aprendizados com o trabalho e com a vivência comunitária, suas narrativas confundem-se com a própria história do quilombo. Enredos de vaqueiro, de agricultor, de pescador... e assim desenha toda uma forma de viver coletivo pautada na luta cotidiana pela subsistência extraída da terra, do cuidado com as criações e das lagoas e do rio das Rãs que banha o território.


“Eu tenho uma memória dada por Jesus. Não aprendi a leitura porque não tinha escola. Mas eu gosto de cantoria...”. Relembrar das comemorações dos festejos juninos enche os olhos de Seu Chico de Helena de emoção. Para além das rezas e das novenas religiosas em devoção ao santo católico, o São João envolvia as cantorias embaladas aos sons da gaita, zambumba, tambor e do ganzá, e com a reunião dos festeiros, o samba de roda não tinha hora de acabar.





Das rezas, o bendito aprendido com sua mãe nunca fora esquecido: “Reza meu filho o Bendito, que é para Jesus Cristo sempre dá o pão”. Sabe palavra por palavra, estrofe por estrofe, e cada um dos gestos que o acompanha. O ritual da reza era uma prática costumeira de sua família que, reunida em círculo, o fazia após as refeições. Ao final do bendito, cada um dos filhos gestualizava o pedido de bênção aos céus: “Bença meu pai do céu, bença minha mãe do céu”. Depois, dirigia-se em fala e gesto para cada um dos pais que respondia: “Deus te dá felicidade, meu filho, e boa sorte”.


Seu Chico de Helena que tem 92 anos de idade e de poesia e música correndo nas veias, ao dizer de si, em gestos que grafa no ar, performa em seu corpo as memórias vividas, as gingas suscitadas no jeito próprio do homem negro quilombola. Marcas das lutas do viver e pelo território, a sua grandiosidade física se impõe e a sua voz nos empresta sua ancestralidade poética.


Abra a janela é a sua última criação musical com letra, ritmo e melodia próprios, compõe-se de versos que remontam o seu tempo de vaqueiro, com os constantes deslocamentos entre Rio das Rãs e Caetité, aboiando o gado para fazendeiros regionais. Por lá, ajuntava-se com tantos outros vaqueiros de diferentes paragens que na hora do descanso, transformado em momentos fugidios de diversão, partilhavam musicalidades, causos e as mais diversas histórias, incluindo aquelas do coração. De suas experiências, associadas à sua argúcia própria de um observador atento e sensível, extrai a matéria necessária para suas criações poéticas.




Abra a janela, meu amor, abra a janela

Abra a janela, meu amor, abra a janela

que tá tendo um homem aqui

Abra a janela, meu amor, abra a janela

é um homem apaixonado que não conseguiu dormir

esse homem é de Goiânia, morador de Caetité

ele vive apaixonado por causa de uma mulher

(Chico de Helena – Música Abra a janela)


Na ação gestual de Chico de Helena é possível perceber a grafia no/do seu corpo dos instrumentos utilizados, tanto a palavra, quanto a musicalidade encontram na sua performance gestual a memória e uma outra escrita que se configura como oralitura, como postulado por Leda Martins (1997), estudiosa das artes e culturas afro-brasileiras.


Para Martins, a memória não se resguarda exclusivamente na primazia da razão, e, nem tão pouco seus registros se limitam à literatura, toda ação corpórea, da oralidade e dos gestos são espaços de memória que trazem consigo a expressão, a emotividade e um jeito próprio de dar corpo a esta experiência. Criar novas forma de reinvenção de si. Nesse sentido, o performer, Seu Chico de Helena, reinventa sua narrativa, adiciona ritmo e cadência às suas aspirações e inspirações, dá leveza às lutas duramente travadas, como se fora muito fácil a conquista do Território, como uma bênção, fortaleza do povo quilombola. Embora reconheça na música Pau Pereira a capacidade de resistência e os esforços para defender o seu lugar.



[...] Jesus é bom, ele é superior

quem gosta de Deus não cai

nem geme nem sente dor...

Graças a Deus, hoje o quilombo é nosso

foi ganhado na justiça

e a custas de nossos esforços [...].



A memória musical de Chico de Helena é memória sinestésica e mimética. O corpo dança e performa sua musicalidade. Performance que é gravura da letra, do corpo, da música, como salienta Leda Martins (2003). Certamente que o que ele performa é herança dos rituais presentes nas mais diferentes culturas de onde partiram os ancestrais do quilombo de Rio das Rãs, em diáspora.


Seus gestos são a delicadeza de quem observa a natureza no seu entorno e demarca sua capacidade de mimese e compõe sua poética cheia de simbologia e analogias entre a natureza e sua visão telúrica, vão ganhando registro musical na voz e no corpo que dança sua canção. Foi assim com a música Pau Pereira: “Eu passava na estrada e via todos os paus florados caía no tempo, caía as flores, né, e o pau pereira não, secava enrriba e não caía. Então falei: vou fazer uma música...”.




Extrato da herança colonial, as letras escritas, registradas no papel, negam a poética africana. Mas a oralitura tomada pelos descendentes de África, irrompe as armadilhas do grafismo/literatura e se apresenta na memória voz e corpo, sem deixar que o legado cultural afro-brasileiro deixe de conter e estar contido na história, expresso de outro modo.


Como um exímio poeta e narrador, daqueles que raramente se encontra, o griot quilombola demonstra grande preocupação com as transformações operadas na contemporaneidade que têm levado os mais jovens a se afastarem da memória social de suas comunidades. Com isso, há uma ruptura no ciclo de transmissão dos saberes ancestrais que outrora eram passados dos avós para os filhos e desses para os netos... Mediante situação, Seu Chico de Helena mobilizou sobrinhos e netos para auxiliá-lo na escrita/registro de seus versos, causos e histórias vivenciadas ou apreendidas com os seus mais velhos. Como bem disse: “A escrita aí eu não escrevo, mas é tudo de minha memória”.


E foi assim que sua casa se transformou num livro aberto, um mosaico de grafias espalhadas nas paredes internas e externas, e que pode ser reconhecida como um patrimônio afetivo e cultural do lugar. Afinal, os rabiscos estão ali para nos lembrar que são indícios da imensidão que compõem a memória e a poética de Seu Chico de Helena, seu poder inventivo e criativo, que dão sentido, corpo, densidade e movimento à cultura quilombola de Rio das Rãs. *|*



*Ádma Bernardino Magalhães, professora da UNEB

**Napoliana Pereira Santana, professora da UFOB


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