Peço licença para as pessoas que vieram antes e para as que vêm depois de mim para dizer que a figura que epigrafa este texto é a esquematização de uma epistemologia negro-africana. Ela faz parte da obra de Bunseki Fu-Kiau. Desde a experiência diaspórica africana do Brasil, o filósofo Tiganá Santana realizou um imprescindível estudo sobre a cosmopercepção Bantu-Kongo a partir também da tradução que fez do livro desse congolês. E esse Cosmograma Dikenga dia Kongo ou Cosmograma Bakongo é chamado de “gramática do mundo” (SANTOS, 2019, p. 124) ao se tratar da posição que o ser humano ocupa no tempo-espaço em que vai se inscrevendo num movimento solar de nascer/pôr-se.
Portanto, os tempos ali divididos nos quadrantes: Musoni, Kala, Tukula e Luvemba são, em ordem: os começos, os nascimentos, a maturidade e a morte. (FU-KIAU, 1980). Ou seja, de maneira muitíssimo simplificada, entendemos que a pessoa tem uma trajetória-formação solar retroalimentada pela ancestralidade do próprio movimento: para cada um, suas aprendizagens, suas potências, seu refazer, o Norte, o Sul, a pessoa-tempo num sistema, o sistema-mundo Bakongo, negro-africano, que faz parte da nossa constituição ao pesarmos nossos corpos negros como plataformas epistemológicas através da diáspora transatlântica, pensarmos, por exemplo, o “Corpo como texto.” (FREITAS, 2016, p.98). E mais: é pensar essas narrativas a partir do corpo negro em seus variados espaços de produção de conhecimentos, é sobre nossos modos de vida.
Ainda a respeito dessa reinvindicação do nosso legado-corpo-texto Bantu (Bacongo, Ambundo e Ovimbundo) (CASTRO, 2005, p.34), Makota Valdina, estudiosa e tradutora de Fu-Kiau, no livro Meu caminhar, meu viver (2015) publicado pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPROMI), trata da ética e estética literária que é encontrada nas comunidades de terreiro para repensarmos sobre o nosso ser, nosso saber, nosso fazer a partir da experiência ancestral solar: é o que pontua também a estudiosa da obra de Valdina, Tainã Cardoso, pesquisadora do Grupo de Pesquisa YORUBANTU: epistemologias Yoruba e Bantu no campo dos estudos literários, linguísticos e culturais da Universidade Federal da Bahia.
+ O CICLO DA VIDA
Minha preocupação principal: O que aprendemos ou apreendemos disso? O que temos ouvidos falar sobre nós? Sobre os sóis? Sobre nossos corpos-textos, que circulam e constituem o Brasil? Sobre esse sol-somos? Que falta isso nos faz numa cultura necropolítica (MBEMBE, 2018) que atravessa nosso tempo, nosso espaço, que interrompe cotidianamente e de maneira estrutural nosso sistema ancestral de pensar a nós, aos nossos, de sermos, de nascermos, de sermos concebidos? E o direito à vida tão caro às nossas epistemologias ancestres? Os direitos... A democracia? Há democracia frente a essas questões racistas seculares? Esse sistema-mundo pensado pelo ocidente e introjetado em nós não tem dado conta de responder tais perguntas. Não há prioridade de vida para nós, não há esse tempo, cadê nosso espaço? Aqui, entra o papel da educação para as relações étnico-raciais e da efetivação de outras Políticas Públicas de Ações no sentido de entender nossa história e nossas culturas, do potencial solar que elas têm para seguir nosso trajeto desde a nossa possibilidade de concepção e continuidade de nossa existência de maneira digna e inegociável.
E esse epistemicídio dos saberes e fazeres negro-brasileiros é reflexo de demandas históricas, sociais, econômicas e culturais ligadas à colonização e seu cunho capitalista, resultando na negação ao acesso à saúde, à segurança, à educação, à moradia, ao emprego, à renda, à água potável, ao saneamento básico, à eletricidade. Sem falar da constante violação dos seus direitos chamados humanos, no racismo institucionalizado, no desterritório dessas populações, do próprio direito de nascer: Sim! O índice de mortalidade infantil de pessoas negras é gritante no Brasil. Estamos falando de ciclos de injustiça social que acompanham a população negra em sua trajetória, que precisa de reparações. Mais um motivo pela continuidade das lutas antirracistas no sentido também ressignificador das histórias negro-africana e negro-brasileira.
Portanto, a discussão dos estudos de epistemologias negro-africanas e do seu conjunto civilizatório na África e na diáspora diz respeito a uma questão mesmo de manutenção de vidas e para a saída do secular estado de violência contra os povos negros a partir das (neo) colonizações, (neo)imperialismos e do racismo: ora, segundos dados oficiais, a cada 23 minutos, um jovem negro é morto no país. É para aprender com o passado, numa perspectiva afrorreferenciada, decolonial e ancestralizada para vislumbrar outras formas de ver os problemas que se colocam e a partir deles produzir soluções criativas calcadas no saber que garantiu, por gerações, a continuidade da solar vida. É para a nossa expansão. É para continuarmos vivendo em potencial. Não à toa, Aza Njeri, também estudiosa dessas filosofias negro-africanas, convoca-nos sempre a “acender nossos sóis”, pois, também entende que todos nascemos com um Sol, que deve ser cuidado para manter a potência.
Tudo isso é sobre o direito de cumprir ciclos, de circular, de viver e morrer em suas plenitudes, sim, o direito de também morrer sem ter nossos corpos levados da face da terra pelos poderes signatários do Estado, por exemplo, que fazem mães chorarem num sepultamento espectral de seus filhos e filhas ou encarcerando em massa a energia vital desses corpos num ato necropolítico. A morte, ou Luvèmba., para os Bakongo na África e na diáspora, deveria representar:
[...] o estágio da maior mudança de todas as mudanças, a morte. Essa fase é conhecida como etapa Luvèmba. Nela, entra-se, naturalmente ou não, no processo de morte ou Vûnda, isto é, repousar, extinguir, deixar o mundo físico, para reentrar no mundo da energia viva, o mundo espiritual, o mundo dos ancestrais. (SANTOS, 2019, p.105)
“O ser humano é um segundo sol nascendo e se pondo na Terra.” (SANTOS, 2019, p.25): a convocação para os meses dos nossos anos, para as semanas dos nossos meses, para os dias das nossas semanas e para as horas dos nossos dias é de que tenhamos a consciência de que sol somos em sistemas ancestrais: que possamos garantir nossos movimentos!
Eumara Maciel dos Santos, é integrante dos seguintes grupos de pesquisa: Escritas à Deriva: Redes Literárias nas Malhas da Ficção em Língua Portuguesa e Língua Espanhola (UNEB); Rede Experiência, Narrativas e Pedagogias da Resistência (REDExp/UnB); Yorubantu - epistemologias Yorùbá e Bantu no campo dos estudos literários, linguísticos e culturais (UFBA) e do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros em Línguas e Culturas (NGEALC/UNEB).
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REFERÊNCIAS
CARDOSO, Tainã de Santana. Epistemologia Yorubantu: A Arte da Palavra e o Axé. Youtube, 26 de mar. de 2022.
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares Africanos na Bahia. 2. ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2005.
FREITAS, Henrique. O Arco e a Arkhé: Ensaios sobre Literatura e Cultura. Salvador: Ogum's Toques Negros, 2016.
FU-KIAU, Kimbwandende Kia Bunseki. African cosmology of the bântu-kôngo: tyingthe spiritual knost – principles of life & living. Ed. Athelia Henrietta Press, NY, 2001.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
NJERI, Aza. Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. Ítaca. Especial Filosofia Africana. n.º 36. Rio de Janeiro, UFRJ, 2020, p. 164-226.
PINTO, Valdina. Meu caminhar, meu viver. 2. ed. Salvador, BA: Sepromi, 2015.
SANTOS, Tiganá Santana Neves. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, Universidade de São Paulo, 2019. Tese de Doutorado inédita.
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