RELATOS DE PESQUISA FEITA EM BOM JESUS DA LAPA-BA SOBRE A RELAÇÃO "TURISMO, MEIO AMBIENTE E EDUCAÇÃO" EM UMA DAS PRINCIPAIS ROMARIAS.
Apelidada de “Capital Baiana da Fé”, Bom Jesus da Lapa-BA possui uma riqueza cultural imensa e é especialmente sobre uma delas que gostaria de conversar com você: as romarias. Anualmente, ocorrem na cidade várias romarias, mas três delas se destacam, dentre outros motivos, em razão da quantidade expressiva de pessoas que atraem: a Romaria da Terra e das Águas (em julho), a Romaria do Bom Jesus (em agosto) e a Romaria da Mãe Soledade (em setembro).
Banhada pelo Velho Chico, que percorre cerca de 70 km município adentro, Bom Jesus da Lapa tem suas atividades econômicas baseadas na agricultura (com destaque para o Perímetro Irrigado Formoso), pecuária, pesca, comércio e turismo, sendo esse último impulsionado pela sacralização do Morro e suas grutas, procuradas há mais de três séculos por pessoas de várias partes do Brasil e também do exterior. A Romaria do Bom Jesus é a mais popular – considerada a terceira maior romaria do Brasil, antes da pandemia imposta pela Covid-19 atraía cerca de 400 a 500 mil visitantes somente na primeira semana de agosto –, seguida pelas festividades da Nossa Senhora da Soledade e da Romaria da Terra e das Águas.
Em 2020 e 2021, os eventos religiosos aconteceram virtualmente. Em 2022, com o retorno presencial das romarias, a expectativa é a de que o fluxo de visitantes volte a crescer ao longo do ano.
Considerado um Santuário Religioso, o Morro da Lapa possui as seguintes dimensões: cerca de 93 metros de altura, 400 metros de largura e aproximadamente 1.000 metros de extensão. Kocik (1988) assim o descreve:
Margeando o rio São Francisco, bem no sertão baiano; aí é que se localiza o Santuário do Bom Jesus da Lapa. Vê-se imponente, um maciço de calcário, de noventa metros de altura, recortado em galerias e grutas. De cor negra, o penhasco carrega em si a vegetação comum da região castigada pela seca. O morro parece um retalho de montanha calcária, isolado no meio de uma planície, com a base quase dentro da água e a margem coroada de cactos, bromélias de espinhos e minaretes de formas diversas. Nele se encontram várias grutas: a do Bom Jesus [...]; a da Soledade [...] e, além disso, para admiração dos romeiros e visitantes, existem outras lindas grutas menores (KOCIK 1988, p. 62).
Nas palavras de Oliveira (2008, p. 8), o Moro da Lapa é a pura definição de santuário: do latim Santum Santorum, a palavra “santuário” significa “santos dos santos [...] é o templo, ou o edifício consagrado às cerimônias de uma religião, lugar santo em geral [...] a parte da igreja onde se celebram as missas”; ou ainda, “o lugar recôndito ou vedado ao público, destinado a guardar ou conservar objetos dignos de veneração”. Assim, o Morro da Lapa, recortado em galerias e grutas consideradas sagradas, ao longo de mais de 300 anos tem sido espaço de visitação e devoção, transformando-se, pois, em “Santuário do Senhor Bom Jesus da Lapa, como igreja estabelecida, local de religiosidade, lugar de descanso para os viajantes, centro de peregrinação e romaria” (ALVES, 2014, p. 19-20).
Relatos de uma experiência de pesquisa
O objetivo dessa prosa é falar um pouco sobre a Romaria da Terra e das Águas, a partir de uma experiência de pesquisa de mestrado realizada em 2017, que contou com a colaboração de 165 participantes, dentre eles romeiros, turistas, padres vinculados ao santuário, moradores locais (comerciantes, feirantes, proprietários de pousadas e restaurantes, professores, estudantes), além de moradores de comunidades quilombolas que participam das festividades religiosas. Como escrevi no livro que publiquei como fruto da pesquisa, intitulado Educação, turismo e meio ambiente: a cidade turística como território educativo, “costumo dizer que as aprendizagens e experiências vividas em campo superaram os propósitos da pesquisa, pois, ao interagir com tantas histórias de vida e relatos de fé e resistência, percebo que, além de crescer como pesquisador, me ressignifiquei como ser humano” (SANTOS, 2019, p. 7).
Em 2022, nos dias 01, 02 e 03 de julho, Bom Jesus da Lapa receberá a 45ª edição da Romaria da Terra e das Águas, tendo como tema “Ouvir e caminhar juntos: somos povos da terra e das águas!”, e como lema “Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (Lucas 24:15).
A Romaria da Terra e das Águas teve início em 1977, com um grupo de aproximadamente 120 lavradores que se deslocaram de Ruy Barbosa (BA) para o Santuário de Bom Jesus da Lapa em peregrinação. Começou como Romaria da Terra e, em 1999, passou a denominar Romaria da Terra e das Águas. Em 2017, quando a pesquisa foi realizada, o tema da romaria era: “O Bom Jesus nos chama a reconstruir a esperança a partir dos pobres”. De lá para cá, os temas de cada ano foram: 2018 – Justiça e paz na Terra: compromisso e fidelidade em defesa da vida; 2019 – Terra, água e justiça: direitos sagrados; 2020 – Terra e água: dons da vida no campo e na cidade; 2021 – Terra, água, teto e trabalho: aliança por justiça e paz; e agora, em 2022 – Ouvir e caminhar juntos: somos povos da terra e das águas.
Como se pode observar, nessa romaria é muito forte a relação entre religião, política, sustentabilidade, direitos humanos e cidadania. A Carta Convocatória da 40ª Romaria da Terra e das Águas, realizada em julho de 2017, assim falava sobre o significado dessa romaria: “significa alimentar nossa fé, reanimar nossas forças, denunciar as injustiças e crueldades contra os pobres, trocar saberes, organizar e retomar lutas por terra, água, territórios, justiça social e ambiental, dentre outras”.
Essa é a essência que norteia todas as edições desse tradicional evento que não é somente religioso: a Romaria da Terra e das Águas traz manifestações político-religiosas, sendo, pois, um espaço de celebração da fé e mobilização social, um lugar de expressão dos direitos humanos, sobretudo o direito à terra e à agua.
Um dos moradores locais que me concedeu entrevista assim fala sobre os seus sentimentos em relação às romarias de Bom Jesus da Lapa, especialmente sobre a Romaria da Terra e das Águas, da qual participava há dezessete anos:
[...] preocupadas com as causas do povo. A questão do rio, que está extremamente relacionada com a questão da Romaria da Terra e das Águas, a terra e suas populações. É tanto que o tema antigamente era Romaria da Terra e posterior, com relação ao rio, passou-se então a discutir e a ser tema Romaria da Terra e das Águas. E aí, assim, o essencial desse contexto é a relação com [os] povos das terras e das águas. Então a Romaria da Terra e das Águas está preocupada com os conflitos sociais, com os modos de vida dessas populações das terras e das águas e que aqui, no Bom Jesus da Lapa, esse povo encontra, além da animação, da troca de experiências, eu diria que força para continuar a caminhada, principalmente pelo fortalecimento e ao retorno daí a denúncias das injustiças por eles enfrentadas em cada comunidade, em cada região, em cada município.
[...]
A Romaria da Terra e das Águas é luta, é fortalecimento da luta para continuar a caminhada na comunidade e a comunidade seria no campo da coletivamente. [...] ela traz esse aspecto de discutir a juventude, os conflitos da juventude, os conflitos agrários, a questão da terra, a questão do rio e a relação da fé e da política, de um Deus que não é o Deus que está lá em cima, como eu diria, que está lá em cima e a população aqui em baixo no sofrimento. Mas dessa força que está junto de, que está junto do povo e de um Deus que assume a partir dessa perspectiva que relaciona fé, política e luta.
Durante a pesquisa, vivi uma singular experiência de romaria (e de pesquisa). Como morador/ex-morador de Bom Jesus da Lapa-BA, há muitos anos participava das atividades culturais e discussões sobre o rio São Francisco – tema sempre presente nas edições da Romaria da Terra e das Águas –, mas durante a realização da pesquisa essa experiência foi mais intensa, pois me vi “do lado de dentro”. Foi um desafio, porque na condição de pesquisador, eu precisava me aproximar e ao mesmo tempo me distanciar, para poder “ver com mais clareza” meu objeto de estudo. E essa experiência singular de romaria e de pesquisa foi possível graças à oportunidade de me integrar ao grupo de romeiros que saiu de Baianópolis-BA para Bom Jesus da Lapa-BA. Uma tradição vivida por eles todos os anos, um compromisso que assumem com a Romaria da Terra e das Águas.
Assim, vivi a experiência de “pesquisador-romeiro”. Hospedei em rancharia com os romeiros, fiz amizades, aprendi com eles e participei de todas as atividades realizadas: missas, via-sacra (em defesa do rio São Francisco), noites culturais (capoeira, teatro, músicas e danças com artistas regionais, comercialização de livros, comidas típicas e artesanatos) e plenarinhos (que consistem em encontros coletivos para debate sobre temas diversos). Foi uma experiência formativa riquíssima, que me possibilitou interagir com turistas e romeiros vinculados a organizações sociais (agricultores, acampados, assentados, etc.), comunidades eclesiais e movimentos populares de dioceses situadas em várias regiões da Bahia, além de moradores locais e de comunidades quilombolas e indígenas que participavam do evento. Os cinco plenarinhos organizados tocaram nos seguintes temas: I) Terra: 40 anos de romaria em defesa da terra, dos territórios e seus biomas; II) Fé e política: reconstruir a esperança a partir dos pobres; III) Crianças: as crianças são convidadas a cuidar da criação; IV) Juventude e biomas: fazendo memória e celebrando a história das culturas de resistência; e IV) Rio São Francisco: transposição e desastre de Mariana (MG): água é para a vida, não é mercadoria!
Como evidenciam as fotografias e depoimentos, a relação entre “romaria, meio ambiente e educação” é uma das características marcantes da Romaria da Terra e das Águas. Trata-se de um movimento popular vivo, em defesa da vida, das terras, das águas, dos povos. Um espaço educativo, de luta, resistência, fé, expressões culturais, laços afetivos, sociabilidades e compartilhamento de vivências, saberes, experiências...
A pesquisa realizada norteou-se pelo seguinte objetivo: analisar os impactos socioambientais das romarias de Bom Jesus da Lapa-BA e as possibilidades e implicações da inserção desse tema local nos currículos escolares da Educação Básica. A minha defesa é que o tema das romarias e suas interfaces seja trabalhado pelas escolas do município, para que os estudantes e a comunidade local compreendam o que significa o turismo religioso e as romarias, seus benefícios e também impactos negativos. Uma leitura crítica sobre o turismo faz-se necessária, pois as pessoas geralmente associam o turismo às oportunidades econômicas e sociais que ele promove, podendo gerar emprego, renda, serviços, produtos e talvez melhores expectativas de vida, mas esquecem que, para além desses possíveis efeitos positivos, o uso das belezas naturais e cultura local como atrativos turísticos pode provocar impactos socioculturais adversos. No caso de Bom Jesus da Lapa, vários impactos socioambientais provocados ou intensificados pelo turismo religioso e romarias foram identificados na pesquisa, tais como: produção de lixo e resíduos sólidos, poluição/alteração do rio São Francisco, poluição e alterações no Morro da Lapa, saturação e colapso do sistema de esgoto, poluição sonora e estética/visual, exploração animal, intensificação de assaltos e furtos, ocupação desordenada dos espaços públicos, alterações na própria cultura local, exploração de trabalhadores, ocorrências de trabalho infantil, evasão escolar, dentre vários outros.
Frente ao exposto, o poder público municipal e a Igreja se veem face a um grande desafio: articular ações e políticas que direcionem o planejamento e a gestão do turismo local com vistas à promoção de sua sustentabilidade como exercício de cidadania, para que impactos socioambientais gerados ou intensificados pelas romarias e práticas turísticas sejam precavidos, supervisionados e mitigados. Entretanto, o planejamento do turismo, das romarias e as possíveis intervenções não devem acontecer sem a participação dos cidadãos e dos próprios visitantes/romeiros: o diálogo com a comunidade local é fundamental, em parceria, também, com pesquisadores e profissionais de diferentes áreas, pois sem essas parcerias o planejamento e criação de programas de sensibilização e desenvolvimento do “turismo responsável e ético” ficam seriamente comprometidos. Por “turismo responsável e ético” estou me referindo àquele que seja sustentável do ponto de vista ambiental, produtivo do ponto de vista econômico e justo do ponto de vista sociocultural (MONTORO, 2003).
Nesse sentido, podemos, então, pensar a cidade (turística) como um espaço educativo. As escolas são convidadas a irem além das paredes de suas salas de aula e dos seus muros para interagirem com a cidade. Um dos autores com quem tenho dialogado é Gadotti (2006, p. 139), que defende uma pedagogia da cidade, “para nos ensinar a olhar, a descobrir a cidade, para poder aprender com ela, dela, aprender a conviver com ela” e, assim, “participarmos da sua construção e da sua reconstrução permanente”. Assim se posiciona o autor:
Todos os habitantes da cidade têm o direito de refletir e participar na criação de programas educativos e culturais e a dispor dos instrumentos necessários que lhes permitam descobrir um projeto educativo, na estrutura e na gestão da sua cidade, nos valores que esta fomenta, na qualidade de vida que oferece, nas festas que organiza, nas campanhas que prepara, no interesse que manifesta por eles e na forma de os escutar (GADOTTI, 2006, p. 134-135).
Pesquisadores da área de Turismo e Educação, como Rebelo (1998) e Fonseca Filho (2007), dentre outros, apontam para a necessidade de municípios turísticos refletirem sobre a importância de uma “educação para o turismo” – seja em espaços formais ou não-formais de educação –, para que a comunidade se aproprie da história e cultura locais, pois (re)conhecer a herança histórica e cultural do lugar onde se vive é imprescindível para o sujeito apoderar-se e aprender a valorizar as questões históricas, culturais, ambientais e atuar de forma consciente no espaço social. Para Fonseca Filho (2007, p. 31), a escola quando considera a cidade turística um território educativo assume, nesse contexto, o papel de difundir conhecimentos e formar “cidadãos responsáveis e protetores de seus patrimônios culturais (patrimônios históricos, culturais, intangíveis e naturais), além de bons anfitriões de visitantes e turistas”. Rebelo (1998), por sua vez, defende a ideia de que municípios turísticos ou potencialmente turísticos devem possuir um Plano Municipal de Educação Turística, atentos não somente à dimensão econômica do turismo, mas, também, à sua dimensão político-institucional, social, cultural, ambiental: vincular a realidade turística da localidade às propostas pedagógicas escolares favorece a integração entre conhecimentos escolares e conhecimentos do cotidiano, oportunizando a conscientização sobre as práticas turísticas e seus possíveis impactos socioambientais.
A Igreja da Lapa Foi
Feita de Pedra e Luz
Vamos Todos Visitar
Meu Senhor Bom Jesus
[...]
Somos Romeiros de longe
É a Fé que nos conduz
Vamos todos para a Lapa
Visitar o Bom Jesus
(Música “A Igreja da Lapa”,
Composição: Santuário do Bom Jesus da Lapa)
+
REFERÊNCIAS
ALVES, Roque Silva. A arte de rezar dos romeiros no santuário do Bom Jesus da Lapa: tradição e inovação. Bom Jesus da Lapa-BA: Gráfica e Editora Bom Jesus, 2014.
FONSECA FILHO, Ari da Silva. Educação e turismo: reflexões para elaboração de uma educação turística. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, v. 1, n. 1, set., 2007, p. 5-33. Disponível em: https://rbtur.org.br/rbtur/article/view/77. Acesso: 15 de maio de 2022.
GADOTTI, Moacir. A escola na cidade que educa. Cadernos CENPEC, v. 1, n. 1, 2006, p. 133-139. Disponível em: https://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/view/160. Acesso: 15 de maio de 2022.
KOCIK, Lucas. Maravilhas do santuário de Bom Jesus da Lapa. Bom Jesus da Lapa: Gráfica Bom Jesus, 1988.
MONTORO, Tânia Siqueira. Cultura do turismo: desafios e práticas socioambientais. Brasília: Theasaurus, 2003.
OLIVEIRA, José Cláudio Alves de. Bom Jesus da Lapa: três romarias, um patrimônio e muita fé. Revista Eletrônica de Turismo Cultural, v. 2, n. 1, 2008, p. 1-23. Disponível em: https://docplayer.com.br/19697196-Bom-jesus-da-lapa-tres-romarias-um-patrimonio-e-muita-fe-prof-dr-jose-claudio-alves-de-oliveira-1-resumo.html. Acesso: 14 de maio de 2022.
REBELO, Salete Mocelin. Plano Municipal de Educação Turística: um modelo para os municípios brasileiros de potencial turístico. Turismo, Visão e Ação, v. 1, n. 2, 1998, p.89-103. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rtva/article/view/1384. Acesso: 16 de maio de 2022.
SANTOS, Silvano Messias dos. Educação, turismo e meio ambiente: a cidade turística como território educativo. Jundiaí, São Paulo: Paco Editorial, 2019.
ZECA, Frei. 45ª Romaria da Terra e das Águas – Bom Jesus da Lapa/Bahia. Disponível em: https://cebsdobrasil.com.br/45a-romaria-da-terra-e-das-aguas/. Acesso: 14 de maio de 2022.
Silvano Messias dos Santos, técnico em assuntos educacionais do CCET-UFOB.
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