A letra, o corpo, o corpo da letra, a letra no corpo, corpos letrados, letrados incorporam o tempo, os tempos se transmutam nos corpos e letras de ontem, de hoje e do amanhã. Por vezes letras nervosas, inquietas, rizomáticas, por vezes concretas, translúcidas e minimalistas, as textualidades modernistas brasileiras questionaram traços, cores e narrativas de um passado in.dependente, enquanto que os ecos dos brados dos bardos inglórios futuravam imagens e outras formas do existir Brasil. Tão falado, muito discutido, às vezes pouco “lido”, o movimento modernista brasileiro nunca foi exatamente UM, mas foram, ainda são, vários, diversos e plurais. Mais do que enunciar novamente o mesmo sobre, é preciso renunciar à repeti-lo sem diferençar daqui em diante.
Por isso, raspemos ainda mais um pouco a casca, nos queimemos na brasa. Antropofagizar é ler pela primeira vez o de novo, inclusive a nós mesmos.
“Aaaaaaiii, que preguiça!”.
Ao som do Trenzinho caipira, marchemos lentamente.
Entre os meses de outubro e novembro deste ano aconteceu o curso de extensão “A Literatura e os Modernismos brasileiros”, promovido pelo campus da UFOB, na cidade de Santa Maria da Vitória. Em quatro encontros de 2h, acrescidos de momentos de leitura assíncronas, o professor Helder e a equipe executora, constituída pelos estudantes Matheus Pereira Dias (Publicidade e Propaganda), Guilherme Lelis (Publicidade e Propaganda) e Jhéssica Sabrina (Artes Visuais), além dos cursistas da comunidade interna e da comunidade externa, se reuniram em diversos espaços de ensino, pesquisa, arte e cultura da cidade para celebrar os 100 anos da “Semana de Arte Moderna” e, também, para compreender os desdobramentos das diversas expressões literárias dos modernismos pelo Brasil. Ou seja, também para entender o que isso tem a ver com a gente, hoje.
O curso possui relação com o projeto de pesquisa, intitulado “Literaturas insurgentes e Políticas da memória”, que pretende difundir não somente a prática da leitura literária com e entre os estudantes do campus UFOB/Samavi em relação com a memória e a política, mas, sobretudo, instituir como um gesto pedagógico a formação de novas comunidades de partilha de experiências com e a partir do texto literário.
Trata-se do exercício da leitura inquieta e criativa, no sentido de tornar comum a cada um dos participantes a práxis da interpretação crítica, contrariando, por sua vez, “a pedra no meio do caminho”, a tal da tese ultrapassada de que o significado da arte verbal só pode ser tecido por doutos e “iniciados”.
Afinal de contas, como afirma o pensador contemporâneo francês Jacques Rancière, o poder do espectador/leitor emancipado “é o poder que cada um tem de traduzir à sua maneira o que percebe, de relacionar isso com a aventura intelectual singular que o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha a nenhuma outra” (RANCIÈRE, 2012, p. 20).
Por sua vez, no corrente ano, além do bicentenário da famigerada “Independência” nacional, também comemoramos o centenário do evento cultural de maior ressonância na história cultural brasileira, a Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo.
Naquela ocasião, os hoje célebres nomes da pintura e da literatura brasileira arriscavam uma nova proposta de intervenção no cenário e no cotidiano da iniciante metrópole paulista para traduzir a identidade brasileira, como um movimento de contestação aos símbolos nacionais forjados no Romantismo, além de apontar o futuro do Brasil perante as mudanças no mundo na terceira década do século XX, aqui pensando no aprofundamento das revoluções industriais, no legado da primeira guerra e nas novas divisões trabalhistas.
A aventura da leitura literária percorreu os manifestos vanguardistas (Futurista, Dadaísta e Surrealista), os manifestos oswaldianos (Poesia Pau-Brasil e Antropófago), alguns dos poemas e dos romances de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, os poemas de Carlos Drummond de Andrade, alguns trechos dos romances de Graciliano Ramos e de Jorge Amado, além de uma reflexão em torno da palavra e do lugar ‘sertão’ nas obras de João Guimarães Rosa e de João Cabral de Melo Neto. De modo panorâmico e com um diálogo bastante diverso com outras artes, a exemplo da música, da pintura, da fotografia e do cinema, não só constatamos, mas experienciamos a pluralidade dos Modernismos brasileiros. E olha que há ainda muito mais a explorar.
Mas algo escapa ao oficial, ao institucional, às normas, às “boas maneiras” do relatar, ao controle das vozes. E é aí que irrompe o desejo, a lembrança, a emoção, a marca do momento, a experiência que frustra expectativas. Pois, como nos disse Paul Zumthor: “comunicar (não importa o quê: com mais forte razão um texto literário) não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação” (ZUMTHOR, 2007, p. 52).
Portanto, eis algumas transformações:
abre aspas
"É engraçado ver a literatura de outra perspectiva, além da prova escrita aplicada em sala de aula. Letras se conectam com sons, elementos variados e imagens.
"Todos em algum momento demostram alguma reação. Mesmo os que não falam demonstram expressões corporais e faciais variadas. A menina sentada do outro lado da sala levantou sua sobrancelha e franziu sua testa umas 4 vezes enquanto alguns poemas eram lidos.
"Gosto do tom visceral que algumas obras que ouvi hoje têm. A imagem dos retirantes ainda martela na minha mente e provavelmente dos outros que estavam lá, em algumas fotos que tirei, vi que algumas pessoas ficaram desconfortáveis com a imagem. Acredito que não com o conteúdo que foi exposto, mas com o texto imagético que não era tão presente em sua mente."
por Matheus Pereira Dias
"Ao longo, vivemos experiências de muita aprendizagem. Foi uma troca de conhecimento muito bacana. O projeto teve como metodologia a realização de seus encontros em vários locais diferentes de nossa cidade. Por fim, o nosso projeto teve sua finalização em uma livraria com uma aula aberta a todo o público, o que foi sem dúvidas um momento muito rico. Foi uma experiência muito boa para mim enquanto membro da equipe executora."
por Guilherme Lelis
"Bom, esse curso de extensão nos mostra a realidade da literatura brasileira em tempos em que poucas pessoas tinham acesso ao conhecimento, uma única forma de abordar e intrigar nossos pensamentos; traz à tona temas que professores nas escolas mostram superficialmente. Quando o assunto é poesia/poema, eu sinto uma grande atração, mas ao ver que antes do modernismo os poemas eram padronizados, tinha que ser uma coisa “bonitinha”, com linhas contadas, estrofes etc. Isso me deixou bastante cansada, só de imaginar. Eu acho lindo, mas não escreveria assim, gosto de sentir o que escrevo, mesmo que seja um verso sem sentido. Falamos sobre grandes nomes, sobre a forma como eles abordavam a sua escrita e conversamos sobre como foi o processo da produção da literatura até aqui. Ensinamentos que não irei esquecer."
por Jhéssica Sabrina
Viva a cultura brasileira! Viva os modernismos inacabáveis e seus gestos transgressores! Viva a leitura literária! Viva a partilha e o comum!!!
Helder Santos Rocha, professor da UFOB.
Guilherme Lelis da Silva, estudante da UFOB
Matheus Pereira Dias, estudante da UFOB
Jhéssica Sabrina, estudante da UFOB
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REFERÊNCIAS
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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