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Ricardo Fagundes

Projeto Aroeira: a Prática como Pesquisa

PROJETO DE EXTENSÃO LEVA AULAS DE TEATRO PARA TRABALHADORAS RURAIS DE COMUNIDADE DE SANTA MARIA DA VITÓRIA (BA) E SE TRANSFORMA EM TESE.


Agradecimento após o espetáculo A Cigarra Canta em Coragina, Coragina, setembro de 2017. Foto: Cirlla Machado.


 

Este relato trata da Prática como Pesquisa. Aqui, veremos a transformação de um Projeto de Extensão em uma Pesquisa de Doutorado, a partir de uma prática artística. A Prática como Pesquisa (Practice as Research) é sobretudo um modo de realizar pesquisa acadêmica onde uma prática integra a metodologia para se investigar temáticas diversas. A prática se torna o meio pelo qual a pesquisa é realizada. Ela norteia a investigação e determina não somente a maneira de se pesquisar, mas também a forma de se refletir sobre pesquisa. Na Prática como Pesquisa, ao invés de se articular pensamentos sobre a prática, estes são articulados, sobretudo, através desta prática, no caso aqui, artística.

Esse projeto pra mim foi assim uma janela que abriu na minha vida e ele me dá muita expectativa. Eu fico assim ligada nesse momento a cada segundo da minha vida, eu não esqueço. Mesmo os dias que não tem aula, mas eu fico ligada no momento que a gente vai se sentar com as companheira pra fazer nossas conversas de teatro, né? Trocar nossas experiências. (Aroeiras).

O objeto em estudo é a Metodologia de ensino e Prática como Pesquisa do Projeto Aroeira, atividade de Extensão desenvolvida na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), que levou aulas de teatro para trabalhadoras rurais entre os anos de 2016 a 2019. As aulas aconteceram na zona rural da comunidade chamada Coragina. As primeiras apresentações, também, foram lá. Assim, nasce o pioneirismo do primeiro grupo de teatro com trabalhadoras rurais no oeste baiano.


Aula do Projeto Aroeira em Coragina, novembro 2018. Foto: Ricardo Fagundes
Cartaz do espetáculo A Cigarra Canta em Coragina..

Trata-se de uma ação onde o aprender e o ensinar aconteceram numa via de mão dupla entre os saberes de vida e os saberes técnicos, entrecruzando-se em transversalidades nos campos da arte e da educação, produzindo movimento, conhecimento artístico e científico, tendo seis princípios norteadores, a saber: afeto, confiança, intuição, memória, horizontalidade nas relações e construção de autonomia. As aroeiras, antes do projeto, tinham atividades voltadas para o cotidiano na lida do campo e em afazeres domésticos. Conheciam umas às outras, porém não se encontravam com frequência seja para uma confraternização, seja para troca de experiências. A maioria vivia em torno da família. Através do convívio com as ações deste projeto, cuja metodologia de ensino tem por foco as relações estabelecidas entre as participantes, cujos procedimentos metodológicos consideram os conhecimentos prévios de cada indivíduo, compartilhando saberes, misturando linguagens, expandindo caminhos ao aprender experimentando, através dos jogos teatrais, conquistando, assim, autonomia e dividindo com o público um produto artístico, transformações aconteceram no dia-a-dia de cada aroeira. Dois espetáculos, seis apresentações, mudanças no comportamento das integrantes e participação comunitária são produtos desta experiência teatral. No entanto, o produto da tese de doutoramento (Prática como Pesquisa), a partir desta experiência como algo que nos toca, nos passa e nos acontece (LARROSA, 2015), é a transformação nesse grupo de mulheres em termos de comportamento, em termos de atitude, em termos de conhecimento de si, relatados ao longo da escrita ao apresentar a metodologia de ensino aplicada. Uma metodologia relacional entre as participantes da experiência, a partir de seis princípios norteadores e dividida em três dimensões: acolhimento, criação e partilha. Para cada um desses momentos, os procedimentos metodológicos estiveram presentes, tendo como base metodológica a Somática e a Abordagem Somático-Performativa, criada pela pesquisadora Ciane Fernandes (FERNANDES, 2018).

Viver por nossas mãos é bom. Viver pelas mãos dos outros é melhor não viver (Aroeiras).

As dimensões da metodologia de ensino refletem não só a visão macro de toda a experiência, mas também o percurso de cada encontro do Projeto Aroeira. O importante nesta metodologia são os princípios que norteiam para as ações, pois os caminhos através de exercícios podem ser diversos de acordo com o individual e coletivo de cada experiência, e, também, do espaço onde acontece. Há distinção do que foi a experiência de três anos e do que se construiu a partir da Prática como Pesquisa, metodologia para meu doutorado. Há, consequentemente, duas instâncias abordadas neste estudo: a metodologia de ensino (construída a partir de minha carreira enquanto artista-pesquisador e desenvolvida durante a prática do Projeto Aroeira) e a metodologia de pesquisa (a Prática como Pesquisa, em que são apresentadas as escolhas para organização da tese, sua escrita, referenciais que se cruzam, coleta de dados, observações e análises para chegar às conclusões, construindo conhecimento científico/artístico). Ou seja, “o que” foi feito (Metodologia de ensino) em diálogo, compartilhando com o “como” foi feito (Metodologia de pesquisa). São dois momentos diferentes, em que seus princípios estão amalgamados em caminhos de reconhecimentos e complementariedade.


As "aroeiras", no dia do espetáculo "A Cigarra Canta em Coragina", em setembro de 2017. Foto: Cirlla Machado

Como ponto de partida, diante de um caminho novo a ser trilhado ao desejar explorar a dimensão transformadora que o Teatro pode proporcionar com mulheres rurais numa zona rural, tendo a Somática como base, surgem as seguintes perguntas: Como se dá a prática teatral numa zona rural para mulheres que nunca tiveram contato com esta forma artística? Quais os percursos metodológicos que poderiam ser abordados para esta prática? Quais mudanças poderiam acontecer na vida de cada uma e da comunidade a partir do contato com essa metodologia de ensino? No Projeto Aroeira, o teatro foi a linguagem, a memória fluida e aberta para soma, segundo Beatriz Bento (BENTO, 2006), o material; as aroeiras, as artistas da cena e o prédio de uma escola desativada, o local para a vida acordar. A fala das aroeiras, antes à sombra de uma sociedade patriarcal, hoje ganha o mundo da cena, reinventando-se sob a luz dos refletores. Rostos, peles e olhos, corpos testemunhas de uma existência, ganharam maquiagem, adereços e figurinos para atualizarem suas lembranças em beleza no brilho do palco. Elas me falaram uma vez, durante uma das aulas, que tinha dia que precisavam carregar uma mala que não tinha alça, mas a carregavam mesmo assim. Disseram que tinham que segurar uma cruz que não havia onde escorar e ainda assim a seguravam. No espetáculo "A Cigarra Canta em Coragina", elas reproduzem essa cena, só que a mala ou a cruz que elas carregam e compartilham com a plateia é um cesto com as flores coloridas confeccionadas por elas.

Eu aprendi... assim... por mais em prática algo que tem dentro de mim e aprendi com as companheira, com o professor, que a gente junto é capaz, a gente é capaz. Coisas que às vez eu vejo que, eu sozinha não era possível realizar, junto com outras companheira e os companheiro, a gente vê que é possível a gente realizar aquilo que a gente tem interesse de fazer, né? Por muito que a gente tem dificuldade, mais a gente consegue se tiver força de vontade. E eu tô percebendo isso. (Aroeiras).

Hoje elas ensaiam sem a minha presença, tiram fotos e filmam, enviando o material para minhas observações. Elas passaram a entender o ofício e o que querem dizer através do teatro. Dividem, atualmente, com outras mulheres o caminho artístico que a vida nos presenteou através deste projeto de extensão que é fruto de uma universidade pública de ensino ao expandir suas ações junto à sociedade, misturando saberes disciplináveis e indisciplináveis, democratizando o acesso à Educação.

Transformam-se, aqui, os agenciamentos da própria existência. Transformam-se, aqui, os ditos de outras pessoas sobre nossas próprias vidas.

Eu pensei: será que ia dar conta? Eu sou meio besta pra falar. Fui criada no fundo da casa. Eu fui uma escrava para ela. Muitas pessoas davam conselho para sair, mas só saí quando eu quis. Eu saí por minha causa. Só tinha a vida. Só tinha a coragem. Ela não baixa mais a cabeça diante da casa (Aroeiras).

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REFERÊNCIAS

BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transsexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.


FERNANDES, C. Dança Cristal: da Arte do Movimento à Abordagem Somático-Performativa. Salvador: EDUFBA, 2018.


LARROSA, J. Tremores: Escritos sobre a experiência. Trad: Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015.


 

Ricardo Fagundes, professor do Centro Multidisciplinar de Santa Maria da Vitória (UFOB).


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