Os livros impressos, para além de suas honrosas funções utilitárias, imediatas ou não, compõem um importante acervo de documentos e de testemunhos da cultura e da história das diferentes sociedades humanas. Por estas mesmas razões, livros são publicados, reunidos, preservados, difundidos, guardados, recomendados, cobiçados, emprestados, reeditados e, há que se dizer, controlados, proibidos, censurados e destruídos.
Livros despertam amor e ódio. Daí a sua persistente presença na vida cotidiana das pessoas, individual e coletivamente. Livros são portadores de sentidos humanos, desde logo, muito diversificados e complexos. Aqui reside um dinâmico núcleo de significados e da importância dos livros, sobretudo, quando adequadamente reunidos, organizados, conservados, consultados e acessíveis a todo e qualquer interessado, leitores e curiosos, grupos sociais e governos. Na história da expressão e da circulação cultural de narrativas, imagens, ideias e valores em práticas de escrita de livros e do público que lê, que gosta de livros ou ambas as sensações, os livros tocam a imaginação e as sensibilidades humanas.
O livro impresso é um produto cultural. É um objeto distinto da tela, de rolos de manuscritos em tecido, papel e pele, de registros grafados em rochas, moedas e placas metálicas ou de madeira. O livro impresso respondeu pela geração de uma cadeia de produção material e de sensibilidades, desde a sua concepção intelectual, passando pelo ato de escrever e o ato massivo da leitura, até a sua acessibilidade em diferentes suportes, formatos, cores, estilos de apresentação estética. Livros impressos resultam das artes gráficas, do design, da comunicação visual, da criação artística sobre papel e da impressão.
Por fim, e não menos importante, livros impressos são vetores dos processos sociais ao longo do tempo, movimentam ações, afirmações, símbolos, valores sociais e políticos muito precisos e concretos.
Livros ou a sua simples redação, quando não publicado ou editado, despertam o desejo e a prática da censura, da fogueira, da prisão, da agressão física e simbólica contra autores e autoras, leitores e leitoras, professores e estudantes, livrarias e bibliotecas, gráficas e editoras. Livros são palavras vivas e, por isso mesmo, migram com desenvoltura para a música, o teatro, o cinema, a televisão, o facebook, o podcast, o Tik Tok entre outros suportes de tecnologia da informação e da comunicação digital.
A presença do livro impresso em coleções, antiquários, bibliotecas, museus, instituições públicas e privadas, ergue materialidades próprias a edifícios, ambientes, mobiliário, instrumentos de escrita, edição, impressão e leitura, estratégias e técnicas de promoção da cultura letrada, em gabinetes e clubes de leitura, contação de histórias, feiras e lançamentos de livros, encontros, entrevistas e diálogos com autores e autoras, boletins periódicos, abrindo-se para outros tantos universos, como o infantil, feminino, étnico, LGBTQIA+, fantástico, religioso.
Espaços dos e para os livros, de e para as pessoas que giram em torno deles, convertem-se em núcleos de memória da multiplicidade de formas que o mundo dos livros assume em cada época, nação e sociedade. São pontos de partida para pesquisas de novas formas e experiências sensoriais, criadoras, imaginativas, lúdicas. Bibliotecas, suas estantes e acervos, seus equipamentos e profissionais, seus frequentadores e os curiosos, entram em interações contínuas, incessantes e infinitas.
O mundo do papel está acabando? Podemos descartar o livro impresso, consumi-lo e despedaçá-lo, instantaneamente, deixar de adquiri-los, de escrevê-los, de guardá-los? A ninguém mais será dada a oportunidade de lê-los e de relê-los, no futuro próximo ou distante? Há muitos livros sem leitores, o livro impresso tornou-se objeto de museu, deverá aguardar a próxima onda vintage ou retrô, será o disco de vinil do futuro?
Em bibliotecas, museus, escolas, tribunais, parlamentos, consultórios e escritórios, estantes particulares, livros e coleções de livros estão umbilicalmente associados a uma cultura republicana, a da liberdade, da partilha, da igualdade, da autonomia e da criatividade. A reforma protestante na Europa queria a Bíblia nas mãos de cada cristão e que este fosse apto para lê-la, interpretá-la e debatê-la junto com os seus irmãos de fé e de pregá-la aos infiéis.
O livro, seja impresso ou não, é sujeito e testemunho da história da cultura republicana, da vida e do bem comum partilhados sob a existência humana. A sua destruição, mutilação, abandono e desprezo são indicativos de uma cultura republicana incompleta, embrionária ou inexistente. Sejam as fogueiras que ardem pela intolerância política, ideológica e religiosa, sejam os grifos de canetas coloridas, marca-textos, rasgos, cortes, dobras, sujeira e amassados. O grau e as formas de agressão, de condenação e de rejeição aos livros impressos serão, sempre e apenas, sintomas de uma democracia sob risco e de uma cultura republicana que necessita ser ensinada, absorvida e promovida no dia a dia da sociedade brasileira, na ponta do lápis.
Paulo Henrique Martinez, é professor na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis e membro da Comissão de Biblioteca do campus.
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