Realizar um resgate histórico acerca do processo de colonização brasileira nos permite entender as contradições que estão presentes na base da sociedade de classes. Vamos contextualizar nossas análises a partir do fenômeno da Modernidade, período em que a Europa criou um grande discurso que pressupôs o Ocidente como uma moldura global. Assim, o mundo colonial/moderno (europeu) convocou todo o planeta para o aparecimento e o expansionismo comercial atlântico, para as transformações vindas da Revolução Industrial e, principalmente, para a conquista das Américas, da Ásia e da África (MIGNOLO, 2002).
A expansão colonial para as diversas partes do mundo favoreceu o privilégio europeu no controle do comércio e, principalmente, na usurpação das riquezas naturais e minerais da América. Assim, a exploração do continente americano, a partir do século XVI, estabeleceu as relações de dominação que naturalizaram a superioridade do homem “branco”.
A invenção da ideia de “raça superior” é, sem dúvidas, um dos discursos empregados que mais garantiu o êxito do domínio europeu. De maneira que essa narrativa contribuiu para tornar a América, bem como as suas comunidades nativas, um espaço de conquista e submissão.
As invasões europeias e todas as experiências coloniais foram sendo desenvolvidas juntamente com as necessidades econômicas do capitalismo mundial. Dessa forma, com o projeto de globalização, iniciou-se também a divulgação dos valores (ideologias) do individualismo, da concorrência e da descontinuidade com o meio ambiente.
Diante do contexto da Revolução Industrial, os ocidentais eurocêntricos passaram a reconhecer a natureza como algo exterior ao sujeito humano. Assim, defendiam o controle sobre o conhecimento da natureza, extraindo os seus recursos para atender ao novo tipo de economia (capitalismo) global. É justamente nesse momento que se inicia o processo de degradação ambiental.
Em suma, o legado dessa relação desrespeitosa com a natureza permanece até os dias atuais, mediante a presunção de que a natureza é fornecedora de recursos naturais para a sobrevivência diária (MIGNOLO, 2017). Diante disso, precisamos descolonizar as práticas econômicas que justificam o domínio sobre o meio ambiente, que naturalizam o racismo e que alienam a grande maioria dos trabalhadores.
"Precisamos descolonizar as práticas econômicas que justificam o domínio sobre o meio ambiente, que naturalizam o racismo e que alienam a grande maioria dos trabalhadores”.
Por essa perspectiva, torna-se válido conhecermos e entendermos outras formas de organizações sociais, ou seja, as diferentes possibilidades de sobrevivência humana. A insustentabilidade, sobretudo ambiental, tem exigido uma mudança de postura, ressaltando que “[...] todas as outras também são opções, e não simplesmente verdades irrevogáveis da história que precisa ser imposta pela força” (MIGNOLO, p. 13, 2017).
O crescimento econômico desordenado está baseado no consumo ilimitado dos recursos naturais, resultando em sérios problemas de injustiças, destruição, violência, pandemias, fome e tantos outros impactos que provocam o desassossego em relação à histórica cultura eurocêntrica, colonial e global. Por isso, apresentamos uma proposta de retomada dos vínculos com a terra e com a natureza. Nesse viés, estamos nos referindo ao Bem Viver, uma filosofia de vida que tem origem nos saberes ancestrais dos povos indígenas (Andinos) e objetiva superar o subdesenvolvimento pelo enfrentamento da alienação (colonização), da injustiça (capitalismo) e da insustentabilidade (antropocentrismo) (CUBILLO-GUEVARA; HIDALGO-CAAPITÁN; GARCIA-ÁLVAREZ, 2016).
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O termo Bem Viver ( buen vivir) no idioma kechwa significa:
SUMAK = plenitude
KAWASAY= viver
O sistema de vida conhecido como bem viver ":
"(...) aceita e apoia maneiras distintas de viver, valorizando a diversidade cultural, a interculturalidade, a plurinacionalidade e o pluralismo político. Diversidade que não justifica e nem tolera a destruição da natureza, tampouco a exploração dos seres humanos, nem a existência de grupos privilegiados às custas do trabalho e sacrifício de outros." (ACOSTA, 2016, p.204)
O Bem Viver, além de representar uma “outra” possibilidade de vida, é uma forma de resistência à colonialidade que, historicamente, tem “[...] imposto modos de vida estranhos e desconectados das diversas realidades, valores e identidades” (LACERDA, 2015, p. 6). A partir da reciprocidade entre as pessoas, da convivência harmoniosa e, especialmente, do respeito pela natureza, a cultura indígena nos inspira a repensar nossas relações humanas.
Ademais, o “Plan Nacional para el Buen Vivir” (2009-2013), do Equador, também pode ser ampliado e utilizado no Brasil. De acordo com Bonin (2015), “o plano propõe uma ruptura conceitual com a noção de desenvolvimento baseado em crescimento e em produção cada vez mais rápida e descartável, em função do lucro” (BONIN, 2015, p. 3).
O desenvolvimento das sociedades deve, prioritariamente, servir ao amparo e à valorização da vida. Logo, não há espaços para a degradação do meio ambiente e, muito menos, para a exploração do ser humano. Em suma, o objetivo do Bem Viver é promover uma sociedade mais justa, intercultural e diversa por meio de ações/políticas que garantam a justiça social e o reconhecimento dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.
Portanto, como mostramos, as culturas indígenas são um grande exemplo de que outras formas de viver são possíveis, pois conseguem, em meio às desigualdades e ao consumismo, sobreviver em comunidades solidárias, sem discriminação e exclusões, convivendo e respeitando todas as diferenças.
Fabrícia Pereira Nascimento Lisboa, técnica em assuntos educacionais (UFOB).
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REFERÊNCIAS
ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Elefante, 2016.
BONIN, Iara. O Bem Viver indígena e o futuro da humanidade. Encarte Pedagógico X, 2015.
CUBILLO-GUEVARA, A. P.; HIDALGO-CAPITÁN, A. L.; GARCIA-ALVARE, S. El buen vivir como alternativa al desarollo para a América Latina. Revista Iberoamericana de Estudos de Desarollo, v.5, n. 2, p. 30-57, 2016.
LACERDA, Rosane Freire. Bem viver: projeto u-tópico e de-colonial. Revista Interritórios, Caruaru/PE, v. 1, n. 1, 2015.
MIGNOLO. Walter D. Occidentalism, the modern/colonial world, and the colonial defference. In: ACOSTA, José de. Natural and moral history of the indies. Durham, NC: Duke University Press, 2002.
MIGNOLO. Walter D. Colonialidade o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), v. 32, n. 94, 2017.
TEJIDO ANDINO, filme.
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