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Construção empírica a partir da História e Cultura Afro-brasileira e Africana

José Francisco dos Santos

RELATOS DA TRAJETIVIDADE ACADÊMICA DE UM PROFESSOR EM BUSCA DE DISCUSSÕES SOBRE A IDENTIDADE NEGRA NA EDUCAÇÃO DO BRASIL.


Desenho de Charles Landseer, sobre negros escravizados no Rio de Janeiro entre 1825 e 1826 . Fonte: Instituto Moreira Salles


 

O caro professor Cícero Félix de Sousa me convidou para escrever sobre minha atuação como docente, mas antes vou discorrer sobre minha trajetória na graduação, no momento em que entrei na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Ao fazer a matrícula e receber o caderno do aluno com as orientações sobre as políticas de assistência estudantil, conteúdos e ementas dos cursos, percebi que não havia ao longo dos quatros anos de graduação as disciplinas sobre História da África e História Afro-brasileira. Dessa forma, a formação do licenciado em História não permitia, naquele momento, maior conhecimento sobre as referidas temáticas tendo, ao contrário, uma forte presença de matérias ligadas à história eurocêntrica.

Livro de historiador estadunidense trata do período de pós-abolição.

Ao estudarmos a História do Brasil víamos a presença portuguesa em solo brasileiro seus impactos na formação do Estado e de maneira tangencial a presença negra, africana e indígenas. Registramos que no período todo em que estudei somente uma professora passou um capítulo do livro “Negros e Brancos em São Paulo”, do historiador estadunidense George Reid Andrews (1998), no qual refletia a respeito dos desdobramentos das consequências do negro, no pós-abolição, assuntos ligados a política de branqueamento da população e as questões ligadas a “democracia racial”.

Essas questões levaram, de forma indireta e direta, adentrar nesse assunto desde 2002, na minha graduação, quando o Centro Acadêmico Sergio Buarque de Hollanda, do qual eu fazia parte, realizou em novembro daquele ano a Semana de Consciência Negra, na UNESP, câmpus de Assis.

A Semana de Consciência Negra desencadeou a criação do Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão da UNESP, o NUPE, que já tinha atuação em outros câmpus da UNESP. O núcleo, como o próprio nome deixa evidente, tinha o objetivo de desenvolver pesquisa e extensão sobre a temática ligada à cultura afro-brasileira e africana. O NUPE tem como característica uma formação interdisciplinar e no campus de Assis era composto por alunos de História, Letras e Psicologia.

Como discorrido em linhas anteriores, o curso de História não tinha disciplinas ligadas ao tema, o que motivou os discentes e docentes envolvidos a criar um grupo de estudos autodidata, buscando, de maneira aleatória, estudar o assunto. Buscávamos informações em sites, e nos livros ligados a essas questões na biblioteca da Universidade. Quando chegou 2003, com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, nossas inquietações acabaram tendo os subsídios da Lei 10639/2003.

Após a graduação realizei cursos de especialização, mestrado e doutorado todos pela PUCSP, em que desenvolvi pesquisas sobre a relação Brasil e Angola, no entanto, não destoando muito da experiência da graduação no que concerne a disciplinas que abordassem conteúdos ligados a história e cultura afro-brasileira e africana. No período entre o mestrado e doutorado lecionei no Centro Universitário Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) em São Paulo e na Universidade Estadual de Maringá (UEM), em Maringá, no Paraná.


Retratos feitos pelo alemão Alberto Henschel em Recife, provavelmente em 1866, quando montou seu estúdio fotográfico na cidade. Acervo: Instituto Moreira Salles.

Em maio de 2016 ingressei na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) como docente, assumindo os encargos ligados à temática da Lei 10.639/2003, diferente da FMU e da UEM. Na UFOB, a estrutura para lecionar esses conteúdos são melhores. Com disciplinas obrigatórias, os graduandos de licenciatura em História fazem os componentes de Histórias das Áfricas I e II; Ensino, História e Cultura Afro-brasileira; e os graduandos do bacharelado em História cursam, obrigatoriamente, História e Cultura Afro-brasileira e História das Áfricas I e II.

Ambos os cursos, além do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (BI), e de outros discentes da instituição (cumpre observar que durante o período de pandemia alunos dos cursos das engenharias e medicina tem frequentado o curso) podem cursar como optativas as disciplinas de Estudo das Relações Étnico-Raciais, Movimentos de Independência no Continente Africano, Pan-africanismo e Pensadores das Independências Africanas. Esses dois últimos componentes curriculares foram criados por mim no momento que estávamos concluindo o Projeto Pedagógico Curricular – PPC, do curso de Licenciatura e Bacharelado em História.

O curso de História na UFOB, nas suas duas modalidades (bacharelado e Licenciatura), além dos componentes da Lei 10.639/2003 oferta a disciplina História Indígena em separado, contemplando a Lei 11.645/2008, na qual um especialista da área ministra o componente curricular.

No Oeste da Bahia, denominada como "última fronteira agrícola do Brasil" (MATOPIBA), na cidade de Barreiras, onde fica a sede da UFOB, o perfil do ingresso do curso na maioria é da região do oeste baiano. Nas turmas que ministrei aulas, grande parte dos estudantes se declaram como afrodescendentes ou simpatizantes das lutas desses grupos.

Nas aulas de História das Áfricas I e II (importa salientar, que achei interessante a nomenclatura História das Áfricas, pois como um continente tão complexo como o continente africano, não tem como discorrer sobre uma África, ela tem que ser no plural Áfricas), as primeiras disciplinas que ministrei, assim como nos outros lugares que passei, o espanto foi geral sobre uma historiografia africana de um povo protagonista de sua história, como obras de historiadores, Elikia M’Bokolo, África Negra (2009). Havia um entusiasmo para além da questão da curiosidade, por parte dos alunos, que nos outros lugares que passei não tinha notado.

Registro que a universidade é nova na região e seus aspectos históricos são cobertos por memorialistas que, via de regra, contam a história dos grandes proprietários e “coronéis”. Creio que o curso de História, nesse sentido, pode contribuir para potencializar outras vozes para que outros grupos também corroborem para a formação histórica da região.

Um exemplo seriam as comunidades remanescentes de quilombolas, nas quais disciplinas como Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, Estudos das Relações Étnico-Raciais podem contribuir para uma maior compreensão e reconhecimento; na região de Bom Jesus da Lapa-BA, a trezentos quilômetros de Barreiras, têm vários grupos organizados que já fazem esse processo de autorreconhecimento.

Em novembro de 2016 fiz a conferência de abertura da “VII Semana da Consciência Negra e IV Seminário das Comunidades Quilombolas do Território Velho Chico, Resistências Históricas e Culturais de Populações Afro-brasileiras”, com o título da palestra: “Relações Brasil-África: passado e presente”, realizado na cidade de Bom Jesus da Lapa.

O evento foi uma grande aprendizagem para mim, que até então não havia tido contato com comunidades quilombolas, grupos organizados procurando formação e qualificação ocupando os bancos universitários. Grande parte do evento ocorreu na Universidade Estadual da Bahia (UNEB), no câmpus XVII, e houve relatos de estudantes quilombolas, da própria instituição, da UFOB, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), sobre ser estudante universitário na construção da identidade quilombola.

Ali constatamos pluralidades das mesas: Socialização do “Estágio de Vivência em Quilombos do Território Velho Chico”; “Direitos das populações negras e quilombolas na contemporaneidade”; “Trajetórias históricas de populações afro-brasileiras”; “Arte e Cultura afro-brasileira”; “Mercado negro: artesanato, gastronomia, dança, música e poesia”. Observei que muitas mesas eram compostas por lideranças quilombolas e acadêmicos das universidades.

Retrato de Alberto Henschel em Salvador, feito entre 1867 e 1870. Acervo: Instituto Moreira Salles.

No ano de 2017 tivemos a VIII Semana da Consciência Negra e V Seminário das Comunidades Quilombolas do Território Velho Chico. Ao contrário do ano anterior, os eventos procuraram se concentrar nas próprias comunidades remanescentes de quilombolas. A Profa. Fernanda Libório, (docente de Arqueologia da UFOB) e eu oferecemos uma oficina intitulada “Arqueologia e Metodologia em História da África e afro-brasileira-brasileira”, que foi ministrado para professores da rede municipal, na Escola Municipal Francisco Flores, na comunidade Lagoa das Piranhas, incluindo, professores de Barrinha e Peroba.

Na cidade de Barreiras-BA há mobilizações, a exemplo do Coletivo Semana da Consciência Negra de Barreiras (SECONBA), que além de organizar a semana ligada à questão do negro na cidade. O evento organizado por este coletivo já está na sua XIII edição, que é composto e organizado por docentes e servidores técnicos das três instituições públicas de Ensino Superior do município: UFOB, IFBA e UNEB. No ano de 2016, aconteceu a primeira edição do curso de extensão em "Estudos Africanos e Afro-brasileiros", e em 2017 além dos referidos conteúdos abordou-se a questão indígena e houve o lançamento de uma revista eletrônica sobre a temática, “Revista Coletiva Seconba”, com artigos científicos de docentes que ministram aulas e discentes que fizeram o curso.

A partir de 2019 e 2020, a UFOB deu início a dois programas de mestrado na área da humanidade e ensino, que são os Programas de Pós-graduação em Ciências Humanas e Sociais (PPCHS) e Programa de Ensino (PPGE), que vêm fortalecer a região na construção de pesquisas que colaboram na construção de saberes e valorização da cultura, de novas abordagens de ensino e aprendizado.

O PPGCHS já teve algumas defesas de mestrado com ótimas contribuições para região, entre elas destaco o trabalho da minha orientanda Érica Naiara Santos Ribeiro, intitulado “O Sertanejo na Escrita de Geraldo Rocha, Discursos Raciais e a Identidade Nacional Brasileira (2022)”. Geraldo Rocha foi um fazendeiro, engenheiro da região de Barreiras-BA, que no início do século XX teve uma importante atuação em ideias no desenvolvimento para a região e que discorre sobre uma “sub-raça sertaneja”. Recomendamos essa leitura.


Retratos de mulheres de Recife, Salvador e Rio de Janeiro, feitos pelo alemão Alberto Henschel, que se dedicava ao registro de paisagem e de retratos. Ele faleceu em 1882. Acervo: Insituto Moreira Salles.

Ainda a respeito dos programas, tenho a felicidade de estar orientando os trabalhos da Laisla Suellen Miranda Rocha (PPCHS), que estuda a questão da branquitude; Cleilton Moreira Mendes (PPCHS), que estuda o papel do professor negro e sua recepção no ensino fundamental I e o conteúdo da Lei 10.639/2003; Micheli Oliveira Fraga dos Santos (PPGE), que estuda educação quilombola; Isabel Cristina Gomes Silva (PPGE), que estuda a aplicação da Lei 10.639/2003 nas escolas de Corrente no Estado do Piauí; Ítalo Carvalho, que pesquisa a trajetória do Professor Euzébio Vanerio e cooriento Anna Caroline (PPCHS), que estuda a questão quilombola e a dança, em Santa Maria da Vitória, além das orientações de trabalho de conclusão de curso, que abarcam questões ligadas à História e Cultura Afro-brasileira envolvendo a História regional e local.

A partir do ano de 2020, no começo da pandemia de Covid-19, o projeto de pesquisa intitulado “Os Sistemas de Proteção e Garantia dos Direitos Humanos voltado à infância e juventude em Portugal e Angola”, que foi submetido, na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e logo na UFOB, que desde o início teve a colaboração da pesquisadora moçambicana Paula Machava, assim como do professor Azancot de Menezes, que havíamos (eu e a professora Andréa Pires Rocha (UEL) entrado em contato ainda quando trabalhava em outra instituição por meio do meu amigo Filipe Pina Zau, que naquela época era reitor da Universidade Independente de Angola (UnIA) e hoje é o Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente de Angola.

Com Azancont de Menezes concretizamos então uma parceria com os pesquisadores ou, como se fala em Angola, investigadores da Universidade Privada de Angola (UPRA), em abril de 2020, salvo engano. Por meio on-line começamos a fazer encontros mensais com pesquisadores de Angola, Moçambique e Portugal, portanto, com dimensão internacional. Também realizamos encontros aqui no Brasil, liderados pela professora Andréa e eu, docentes e discentes de graduação e pós-graduação da própria UEL, UFOB e Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Ambos os encontros de grandes importâncias, pois a partir desses encontros do Atlântico Sul, e porque não dizer Índico, tendo em vista a participação de Moçambique, dessa relação Sul/Sul e no caso do Brasil das trocas entre as regiões Sul e Nordeste, entre o Paraná (Norte desse Estado, em especial Londrina) e Bahia (Oeste da Bahia, em especial Barreiras).

A partir desses encontros, realizamos debates ligados à infância e juventude e direitos humanos. As reflexões trazidas nesses debates foram/são interessantes, pois embora todos tenham envolvimentos de colonização portuguesa, em suas concepções e práticas cotidianas, percebemos pelas trocas desses encontros as distinções e semelhanças no que concerne infância e juventude, no caso de nossa pesquisa, em especial as garantias de direitos, assim como a diferenças de mentalidades e práticas nas políticas institucionais dos Estados nacionais, o que ao longo da investigação serão melhor apontadas.

Cumpre observar que o grupo de pesquisa participou do “Painel - Direitos Humanos, proteção e educação: miradas a partir do Sul”, que mediei e teve como palestrantes os membros do grupo de pesquisa M. Azancot de Menezes, vice-reitor da Área Acadêmica da Universidade Privada de Angola e Pró-reitor da Universidade de Díli (Timor-Leste), e o docente professor Dr. Helder Amâncio, que é professor de Antropologia na Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) e a professora Andréa Pires Rocha, do Departamento de Serviço Social da UEL. Todos os membros do grupo de pesquisa. O evento foi promovido pelo Fórum Sociedade Crítica, ligado ao PPCHS.


Não obstante, o grupo de pesquisa realizou o seu próprio evento na UEL, de forma virtual, o I Seminário “Direitos Humanos, Infância e Juventude em Angola, Brasil, Moçambique e Portugal: resistências e desafios”. O seminário teve o objetivo de tecer reflexões acerca da defesa e garantia dos Direitos Humanos voltados à infância e juventude nesses países. O evento apresentou o histórico de luta e resistência que envolve a conquista de direitos e a necessidade de implementação de sistemas de proteção, problematizando os desafios impostos pela persistência da colonialidade, do racismo, como também pelo desmonte das políticas públicas no bojo do Estado neoliberal. Deste evento resultou o livro “Direitos Humanos, Infância e Juventude em Angola, Brasil, Moçambique e Portugal: resistências e desafios” (2022), organizado por mim, José Francisco dos Santos, Andréa Pires Rocha e Irandi Pereira.


A região tem, portanto, uma demanda suprimida, que a universidade pode colaborar e vem colaborando. Acredito que, inclusive, a universidade de uma forma geral, em todos os cursos deveria ter uma disciplina de Estudos das Relações Étnicos-Raciais, ou História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígenas, para justamente buscar a valorização das culturas de grupos envolvidos, possibilitando a geração de saberes plurais em consonância com a região, bem como com o Brasil e reflexões numa perspectiva sul/sul.


 

José Francisco dos Santos, professor do Centro das Humanidades (UFOB).


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REFERÊNCIAS

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru, Edusc, 1998.108


BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino e Cultura Afro-brasileira e Africana, 2004.


BRASIL, Lei 10639/2003, promulgada em 09 de janeiro de 2003.


BRASIL, lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.


M’BOKOLO, Elikia. África Negra: História e Civilizações Tomo I (até o século XVII). São Paulo/Salvador: EDUFBA/Casas das Áfricas, 2009.


SANTOS, José Francisco dos. 2010. Movimento Afro-Brasileiro Pró-Libertaçãode Angola (Mabla) – “Um amplo movimento”: Relação Brasil e Angola de 1960 a 1975. Dissertação Mestrado em História. São Paulo, PUCSP.


SANTOS, José Francisco dos. Encontro e desencontro Brasil-África: passado e presente - o caso de Angola In: NOVAES, Maria de Fátima; SANTANA, Napoliana Pereira; Paulo Henrique Duque (Org.) Bahia, Escravidão, Pós-Abolição e Comunidade Quilombolas: Estudos Interdisciplininares. Salvador: EDUFBA E EDUNEB, 2018.


SANTOS, José Francisco dos. Historiografia e metodologia em história da África: construindo o conhecimento no chão das escolas quilombolas. REVISTA TEMPO, ESPAÇO E LINGUAGEM. v.10, p.108 - 123, 2019. https://revistas2.uepg.br/index.php/tel/article/view/13812. Acessado em 24/04/2022.


SANTOS, José Francisco dos. Relação Brasil/Angola: a participação de brasileiros no processo de libertação de Angola, o caso do Mabla e outros protagonistas. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014.


SANTOS, José Francisco; ROCHA, Andrea Pires; PEREIRA, Irandi (Org). Direitos Humanos, Infância e Juventude em Angola, Brasil, Moçambique e Portugal: resistências e desafios. Londrina: UEL, 2022.


SANTOS, José. Francisco dos. 2015. Angola: ação diplomática brasileira no processo de independência dos países africanos em conflito com Portugal no cenário da guerra fria. Tese Doutorado em História. São Paulo, PUCSP.



 
 
 

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