SÉRIE CIDADE INVISÍVEL RESSIGNIFICA CRIATURAS MÍTICAS E FOLCLÓRICAS DAS MATAS BRASILEIRAS AO ENVOLVÊ-LAS EM UMA TRAMA URBANA.
Em meados do século XX o Brasil vivenciou a passagem de um longo período de predomínio quantitativo da população rural para uma urbanização contínua e incontornável da sociedade, processo que se consolidou nas décadas seguintes até atingir a atual proporção de oito entre dez brasileiros vivendo em centros urbanos de diferentes tamanhos demográficos. Essa vertiginosa transformação não apenas mobilizou milhões de pessoas do campo para a cidade, mas incidiu também em sensíveis mudanças no imaginário de uma sociedade cada vez mais apartada das tradições que ligavam o “matuto da roça” à sua ancestralidade mestiça.
Toda essa cosmovisão povoada por histórias de seres extraordinários das matas e fazendas, de herança indígena ou negra e cuja transmissão era feita por meio de uma forte tradição oral foi sendo gradativamente substituída pelas chamadas lendas urbanas, pelo Halloween ou, como não poderia deixar de ser, pelo universo dos quadrinhos, ainda mais popular devido ao cinema. Hoje em dia, não é exagero afirmar que um garoto da cidade conheça mais sobre Thor, Loki e mitologia nórdica que sobre o Boitatá ou o Nego d’Água, por exemplo. Apenas sinais dos tempos, dirão alguns...
Na contramão desta tendência, o seriado Cidade Invisível, lançado em fevereiro de 2020 pelo canal de streaming Netflix, reivindica uma renovada centralidade para algumas das mais conhecidas lendas tradicionais brasileiras. Isso não quer dizer, contudo, que sejam vistos como heróis ao estilo Vingadores. Ao contrário, na cidade cada um deles possui uma vida ordinária e sofrida que em muito se assemelha com as trajetórias dos milhões de contadores de histórias fantásticas que saíram dos rincões interioranos do país em direção aos grandes centros urbanos e tornaram-se sujeitos invisibilizados e marginalizados.
Ambientado na metrópole do Rio de Janeiro, o seriado mostra o Saci-Pererê como morador de uma ocupação, o índio Curupira alcóolatra e em situação de rua, enquanto a Cuca, o Lobisomem e a Iara bem poderiam figurar como pastores da noite no universo amadiano.
Ambientado na metrópole do Rio de Janeiro, o seriado mostra o Saci-Pererê como morador de uma ocupação, o índio Curupira alcóolatra e em situação de rua, enquanto a Cuca, o Lobisomem e a Iara bem poderiam figurar como pastores da noite no universo amadiano.
Não seria demais dizer, portanto, que a urbanização os reduziu a meros anônimos e que seu desaparecimento é questão de tempo, uma vez que as histórias que os animam correm sério risco de serem substituídas por outras, mais de acordo com o vibrante modo de vida das cidades.
Outro aspecto do seriado que reforça essa interpretação é o fato de, no enredo, o único lugar onde a tradição de cultuar os seres extraordinários do folclore brasileiro ainda se mantém vívida é a Vila Toré, onde moram caiçaras em conflito com um empresário interessado em erguer um empreendimento turístico-hoteleiro, cuja ameaça se estende também à mata próxima, berço das criaturas lendárias. Assim, tanto as lendas quanto os seus portadores podem desaparecer justamente pelo avanço da urbanização turística.
O programa televisivo lança mão, portanto, de uma robusta linguagem simbólica para mostrar ao seu expectador o poder das intensas transformações que levaram o Brasil a tornar-se um país com esmagadora maioria de citadinos sobre o imaginário coletivo, matando fantasias. Resta saber se, em uma possível segunda temporada, os seres lendários terão a sua revanche frente ao avassalador processo de urbanização. *|*
Paulo Baqueiro, professor da UFOB
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